Koto Bolofo, aqui

5.

                                                                 Que nenhum se aflija
                                                da pulsação tremida com que o outro
                                                filigrana o seu coração.
                                                           Como guitarra incerta 
                                                                 nos fossos do silêncio,
                                                                 como voz coroada 
                                                                 no heroísmo de falhar. 
                                                Assim, e só assim, encontraremos 
                                                         a nossa religião:
                                                sem o escândalo de a cultivarmos.


Vasco Gato, in A Fábrica, Língua Morta, 2012


A rua era de terra barrenta e perfumada, doce depois da chuva, mas não húmida. De ambos os lados havia casas de meretrizes cujos corpos, de um mármore comovente, se conservavam modestamente postados diante das respectivas portas, como no limiar de um santuário. Sentavam-se em tripeças, colocadas em plena rua, como as pitonisas, os pés ocultos nas pantufas de cor viva. A originalidade da iluminação dava a toda a cena as tintas de uma fábula eterna: em vez de ser iluminada do alto, toda a rua recebia a luz de uma série de lâmpadas de carbureto, de chama radiante, pousadas no chão, lançando irreais sombras violeta nas esquinas e sobre as empenas dessas casas de bonecas, nos olhos e nas narinas das locatárias, na submissa doçura dessas dessas trevas de forro de casaco. Eu percorria lentamente esse extraordinário jardim de flores humanas, pensando que uma cidade, tal como uma pessoa, reúne as suas predisposições, os seus apetites e os seus temores. Cresce para maturidade, produz os seus profetas, declina na senilidade, na velhice ou na solidão, que é ainda a pior de todas as coisas. Inconscientes de que a cidade está moribunda, os vivos continuam a sentar-se nas ruas, como cariátides sustentando a noite, com as dores do futuro pintadas nas pálpebras; observando insones os caçadores de imortalidade, através de toda a fatídica extensão do tempo.

Lawrence Durrel, Justine, D. Quixote, 2012

Repito que vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido
Correndo ao lado dele, correndo para ele – era assim
Que eu queria que fosse a linguagem feroz :
Uma casa para a infância com trepadeiras
Para que as palavras ficassem como frutos no alto.

Repito a corrida na memória quando estou parado
Penso velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado
De locomoção.É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secreto
Do amor.

Sei que estou em viagem na palavra que se move.

Repito o trajecto para ver o poema de novo- era assim
Que eu queria que fosse a linguagem de uma coisa amada
Correndo ao meu lado, correndo para mim no mecanismo violento
Do amor.  Era nele que eu queria a casa com trepadeiras
Onde as palavras ficassem silenciosas e altas como um pátio interior.

Daniel Faria, in Poesia, Assírio & Alvim, 2012