Desviei os olhos; não queremos que nos lembrem o pouco que valemos, a rapidez, a simplicidade e o anonimato da morte.

Foi o meu primeiro instinto: protegê-lo. Nunca me ocorreu que houvesse uma maior necessidade de me proteger a mim próprio. A inocência pede sempre silenciosamente protecção, quando seria muito mais sensato precavermo-nos contra ela: a inocência é como um leproso mudo que perdeu o guizo e vagueia pelo mundo sem más intenções.

Graham Greene, 
O Americano Tranquilo, Ulisseia 2010, or. 1955 (tradução P.J. de Moraes)

"Troque os Maias pela Meyer", notícia da campanha aqui
A madrugada desponta e mais um dia
Se prepara para o calor e o silêncio. No mar o vento da
madrugada
Encrespa-se e desliza. Eu estou aqui
Ou ali, ou algures. No meu começo.

T.S. Eliot,"East Coker", in Quatro Quartetos, Relógio d'Água, 2004, or. 1944 (tradução de Gualter Cunha)
BURNT NORTON
I.

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que fica uma possibilidade perpétua
Somente num mundo de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Apontam para um só fim, sempre presente.
Sons de passos ecoam na memória,
Descem o caminho que nós não seguimos
Em direcção à porta por nós nunca aberta
Para o jardim de rosas. As minhas palavras ecoam
Assim no teu espírito.
                                          Mas com que propósito
Perturbam o pó numa taça de folhas de rosa
Não sei.
                               Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos seguir?
Depressa, disse o pássaro, procurai-os, procurai-os
Ao voltar da esquina. pelo primeiro portão,
Para dentro do nosso primeiro mundo, vamos seguir
O ludíbrio do tordo? Para dentro do nosso primeiro mundo
Ali estavam, graves, invisíveis,
Moviam-se sem pressa, sobre as folhas mortas,
No calor do Outono, pelo ar vibrante,
E o pássaro chamou, em resposta
À inaudível música oculta nos arbustos
E o invisível relance perspassou, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como convidadas nossas, acolhidas e acolhedoras.
Assim nós e elas avançámos, num padrão formal,
Pela alameda vazia, até ao círculo de buxo,
Para olhar para dentro do lado esvaziado.
O lago seco, o cimento seco, de bordos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita da luz do Sol,
e o lótus subiu, devagar, devagar,
A superfície cintilou do coração da luz,
E ficaram por detrás de nós, reflexos no lago.
Passou então uma nuvem, e o lago ficou vazio.
ide, disse o pássaro, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Em excitaçãoe scondidas, a refrear o riso.
Ide, ide, ide, disse o pássaro: a espécie humana
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que poderia ter sido e o que foi
Apontam para um só fim, sempre presente.

T.S.Eliot, in Quatro Quartetos, Relógio d'Água, 2004, or. 1944 (tradução de Gualter Cunha)



The laughing heart


Your life is your life.
don’t let it be clubbed into dank submission.
be on the watch.
there are ways out.
there is a light somewhere.
it may not be much light but
it beats the darkness.
be on the watch.
the gods will offer you chances.
know them.
take them.
you can’t beat death but
you can beat death in life, sometimes.
and the more often you learn to do it,
the more light there will be.
your life is your life.
know it while you have it.
you are marvelous
the gods wait to delight
in you.



Charles Bukowski
UM POEMA DE CARL SANDBURG

Quero-te
como as raízes secas
desejam a chuva
no verão

como o vento
deseja as folhas
do chão

e perdoa
dizer tudo isto
tão depressa

Emanuel Félix, in A Viagem Possível. Poesia (1965/1992), Vega, 1993
POÉTICA

Nada digo por hábito
tudo o que vem de ti
Nasce de novo

Nada digo de novo
Sobrevoo
o deserto movente das palavras
em busca de um sinal
exacto e comovente do teu corpo.

Emanuel Félix, in A Viagem Possível. Poesia (1965/1992), Vega, 1993



"Love is the only engine of survival"

Leonard Cohen, Future (em random)
Sofistico as memórias: sei que não deliro quando nos oiço música.

Mas o assalto é urbano e vem de perto. Agiganta-se um ser contorcido, que chove imenso, de pura dor. Desmancho-me por ele. Às vezes somos tão parecidos. Não aguento a indiferença dos automóveis que o esmagam e as buzinas lembram-me de ti: não são como nós, notas e cordas, infinitos. Por dentro, tudo é líquido: secreções e lágrimas. No interior da selvajaria é que está esta dor, preclaramente irracional, expressando-se em sons primitivos e calados, uivos de nomes impronunciáveis.

Sofistico as memórias: vejo a claridade que inventaste para mim.

Mas deito-me com o escuro. Não decidirei por muito mais tempo caminhar para longe. É a medida de um sonho que não poderei contar-te. Conservo instintos, às vezes sou só este terror de atravessar o asfalto riscado com a imponderabilidade de tudo.  

Sofistico as memórias: moves-te à velocidade da minha ternura.

De cabeça pousada ao lado do animal ferido, percebo que ele não entende a frase: não se morre moderadamente. É espantoso como somos tão diferentes. 


De resto, sou bastante o teu nome, límpido, sobre fundo branco: o futuro. 






















Goa, 2008
O verde das grades era incompreensivelmente idêntico ao das folhas. Altas, as grades. Como as árvores. De uma crueldade involuntária, porque de tamanho ainda excessivo para a sua infância. Foi por essa altura, tão baixa, que ganhou o hábito de olhar para cima. Chamaram-lhe altivez, queda para o ballet clássico, natureza onírica, problema de coluna. Era apenas uma inclinação para o infinito.
Só se lembrou de olhar para baixo muito mais tarde, quando o conheceu. Fixou os olhos no chão e jurou nunca ir lá parar. Passou a evitar as doenças para os tornar possíveis.
A imortalidade é um luxo do amor ou, então, simples estupidez. Um lugar entre o céu e a terra, sem dúvida.
De plus, il y a un fond d'indifference chez l'enfant qui est très rarement décrit. Je ne sais pas si les gens sont embarassés par le sentiment de cette indifférence mais  j'en suis frappée quand je regard des enfants: il vivent dans un monde à eux. Et j'ai l'impression que je vivais dans un monde à mois. Je crois que la plupart des écrivains, même les "serieux", qui parlent de l'enfance, se trompe toujours là-dessus.

Marguerite Yourcenar, Les Yeux Ouverts- Entretiens avec Mathieu Galey, Editions du Centurion, 1980



Henri Cartier-Bresson 
SONETO VÍVIDO

O meu amor por ti assombra os astros
da noite escassa para o nosso amor. 
Soneto vívido de versos castos, 
no desgaste da boca um som de flor.

E no engaste do teu sexo, uma rima
a completar corpo comum de dois,
substantivo ou canção que nos ensina
a fabricar na pele ethéreos sóis.

Nas mãos, ainda, a ternura extensa
certeira se dilui nos alvos rubros
e o riso se pratica a comer uvas.

O meu amor por ti marca presença:
dormimos viagens, e os teus ombros cubro-os
temendo, dêste inverno, as ígneas chuvas.

António Barahona, in Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, Averno, 2011
"Preserve your emotions"
Robert Doisneau, 1957
(...)
Em certos casos, as minhas palavras poderiam atravessar os teus lábios, entrar devagar na tua existência; não o que dizem, mas sim as palavras elas mesmas, sua exalação quente como o amor.

Estou a falar de expressão, não dos gritos com que ocultais a nudez. Debaixo das arcadas estalam signos de impudor: ama-me, dizeis ao transeunte, ama-me antes da morte. E entendei-vos com esta usura.

De outra maneira, noutra língua, eu te respiro sem encontrar-te.  És incerta e essa é a tua plenitude.

Assim é a idade, assim é a forma do meu tempo.

Antonio Gamoneda, in Descrição da Mentira, Quasi 2003 , or 1977 (tradução de Vasco Gato)
De todas as felicidades que lentamente me abandonam, o sono é uma das mais preciosas e também das mais comuns. Um homem que dorme pouco e mal, encostado a numerosas almofadas, tem tempo de sobejo para meditar sobre esta particular voluptuosidade. Concordo que o sono mais perfeito está forçosamente ligado ao amor: repouso meditado, reflectido em dois corpos. Mas o que me interessa aqui é o mistério específico do sono, saboreado por si mesmo, o inevitável mergulho a que se aventura todas as noites o homem nu, sozinho e desarmado, num oceano onde tudo muda, as cores, as densidades, o próprio ritmo da respiração, e onde encontramos os mortos. O que nos tranquiliza no sono é que se sai dele, e que se sai sem qualquer mudança, pois que uma extravagante interdição nos impede de trazer connosco o resíduo exacto dos nossos sonhos.

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Ulisseia, 2004, or.1974 (tradução de Maria Lamas)
Revistas Criatura e Golpe d'Asa, no Diário Câmara Clara, 17 Janeiro 2012, aqui

(...)
Speak the words with the exact precision with which you would check out a laundry list. Do not become emotional about the lace blouse. Do not get a hard-on when you say panties. Do not get all shivery just because of the towel. The sheets should not provoke a dreamy expression about the eyes. There is no need to weep into the handkerchief. The socks are not there to remind you of strange and distant voyages. It is just your laundry. It is just your clothes. Don't peep through them. Just wear them.
The poem is nothing but information. It is the Constitution of the inner country. If you declaim it and blow it up with noble intentions then you are no better than the politicians whom you despise. You are just someone waving a flag and making the cheapest kind of appeal to a kind of emotional patriotism. Think of the words as science, not as art. They are a report. You are speaking before a meeting of the Explorers' Club of the National Geographic Society. These people know all the risks of mountain climbing. They honour you by taking this for granted. If you rub their faces in it that is an insult to their hospitality. Tell them about the height of the mountain, the equipment you used, be specific about the surfaces and the time it took to scale it. Do not work the audience for gasps ans sighs. If you are worthy of gasps and sighs it will not be from your appreciation of the event but from theirs. It will be in the statistics and not the trembling of the voice or the cutting of the air with your hands. It will be in the data and the quiet organization of your presence.
Avoid the flourish. Do not be afraid to be weak. Do not be ashamed to be tired. You look good when you're tired. You look like you could go on forever. Now come into my arms. You are the image of my beauty.

How to speak poetry, Leonard Cohen, ouvido aqui

A VIAGEM

Quem é alguém que caminha
toda a manhã com tristeza
dentro de minhas roupas, perdido
além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
como se levassem nos bolsos
doces geografias, pensamentos
de além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
vem morrer no longe horizonte
do meu quarto, onde esse alguém
é vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
coisas em voz que não ouço.
Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

João Cabral de Melo Neto, in Poemas para Ler na Escola, Objectiva, 2009
GAZEL I

DO AMOR IMPREVISTO

Ninguém compreendia esse perfume
da escura magnólia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
um colibri de amor entre teus dentes.

Mil eram os potros persas que dormiam
na praça com luar da tua fronte,
enquanto eu quatro noites enlaçava
tua cintura, inimiga da neve.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Eu busquei, para dar-te, no meu peito,
as letras de marfim que dizem sempre.


Sempre, sempre: jardim desta agonia,
teu corpo fugitivo para sempre,
o sangue de tuas veias em meus lábios,
teus lábios já sem luz prà minha morte.

Federico Garcia Lorca, in Antologia Poética, Relógio de Água, 1993 (tradução de José Bento)
Li num livro a história de um rapaz cuja infância foi atravessada por uma guerra. Um túnel que lhe furou as vísceras, desabituando-o de lençóis quentes e mãos conhecidas, onde nações crescidas negociaram o futuro. Este rapaz sobreviveu engolindo bagas e vomitando silêncio. Quando a guerra terminou queriam à força que se reconciliasse com a beleza do mundo em campos de refugiados. O rapaz tentou, pois tentar é qualidade da infância, mesmo que esventrada. Tentou, sem pais, sem pátria, sem língua. Passou-se entretanto demasiado tempo, ao ponto de se tornar ilógico chorar qualquer carência primitiva. O rapaz tinha sido sentado a uma mesa posta e tivera a sorte de chegar a esta casa, onde um casal que esqueceu as infidelidades para partilhar a refeição lhe perguntava o que queria comer. Mas, tragédia invisível e tão pouco comentada, o túnel que lhe furara a infância não tinha apenas atingido o estômago, mas uma zona bem menos concreta da sua existência, por ser sempre potência e suposição: o conhecimento. Lembrava-se vagamente de prateleiras com livros, de orações melodiosas e de pais serenos, que amavam jardins. Adulto, não sabia ler e fazer contas de aritmética era uma simples impossibilidade. Não reconhecia o nome de um actor famoso e era incapaz de identificar a Mona Lisa. Queria continuar, como previsto, mas faltava-lhe tudo isto, o que lhe tirou parte significativa da alegria de estar vivo. Fatalidade ou engenho: tornou-se escritor. 
Excerto do livro aqui
O POETA

Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação para ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar o resto da vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter de assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

Manoel de Barros, in Ensaios Fotográficos, Record, 2007
FRIO

Chove
          em metade da noite,
como se ainda fosse possível mais escuridão.

Consigo ouvir a água que arranha os telhados
e transforma as ruas
                              em grandes veias negras.

Lentamente, aproximo-me da janela e apenas encontro escuridão
                               e água:

o fundo de um oceano.

No entanto,
é tudo tão belo e estranho
-lembras-te?-
como roçar a pele de um tubarão.

Para quê dar um sentido a cada coisa?

A noite e a sua hemorragia incontível, por exemplo.

Sei que a água é um vínculo
entre mim e ti,
e que o sol de amanhã mostrará com orgulho

                        a enorme cicatriz do horizonte.

Mas terá de ser amanhã
porque se não houver amanhã nada importa.

Josep M. Rodriguez, in A Caixa Negra, Averno, 2009 (tradução de Manuel de Freitas)
MOMENTO

Um céu derretido
como cera quente.

Naquele preciso momento
em que não é possível distinguir
o dia da noite,
recordar-me de ti:

um dentro do outro.

Josep M. Rodriguez, in A Caixa Negra, Averno, 2009 (tradução de Manuel de Freitas)
A TERCEIRA ELEGIA

(...)
Mãe, tu o fizeste pequeno, foste tu que o começaste;
para ti ele era novo e sobre esses olhos inclinaste
o mundo amável e deles apartaste o mundo estranho.
Mas, ai, onde os anos em que tu, só
com a tua esguia figura, detinhas o caos que pairava?
(...)

Rainer Maria Rilke, in As Elegias de Duíno, Assírio e Alvim, 2002 (tradução de Maria Teresa Furtado)
__________ se estiveres ausente ( automóvel, comboio, avião, mudança de estação ou de cidade ), compra um papel simples que te comunique e envia-mo pelos meios mais eficazes ao teu alcance, e que te revelem como comprimido a desfazer-se debaixo da língua.


Maria Gabriela Llansol
O espaço ocupa-se de baixas temperaturas. É assim que se explicam as mãos geladas deste lugar. Podia ter escrito um manual de normas ou uma carta de intenções sobre tão complexo processo. Mas a esta mudança, do cheio para o vazio, apenas um princípio bastou:

Cuspiu sobre a madeira, ela não protestou. 
Pegou nos jarros de vidro e atirou-os ao chão. Das flores, nem uma lágrima. 
Espalhou dedos sujos sobre os vidros entre as molduras, permaneceram transparentes. 
Pegou nas cartas que lhe haviam escrito, amachucou-as. As palavras torceram-se, quase ficaram ilegíveis. Depois rasgou as folhas em pequenos pedaços. E as caligrafias deixaram de se distinguir. 

Os móveis, os sapatos, a roupa, os quadros amontoou-os à porta. A um canto, guardou os papéis e sobre eles pousou um livro. Apesar do frio, alguma coisa ali conservava um nome sensível. Fechou a porta, com convicção. Tinha tudo o que precisava para viver.  
(...) a literatura, quando é verdadeira, é a melodia religiosa que perdemos. A literatura contém em si todos os elementos da fé: a seriedade, a interioridade, a música e o contacto com o conteúdo secreto da alma.

Aharon ApplefelFragmentos de Uma Vida, Civilização Editora, 2005 (tradução do hebraico de Lúcia Liba Mucznick)
O esforço para conservar a minha língua materna num ambiente que me impunha uma outra língua foi vão. De semana para semana, aquela ia-se tornando cada vez mais pobre e no fim do primeiro ano já só restavam dela algumas brasas. Aquela dor não era unívoca. A minha mãe fora assassinada no princípio da guerra e eu conservei a imagem do seu rosto dentro de mim durante aqueles anos todos na esperança de vir a encontrá-la no fim da guerra e de a nossa vida voltar a ser o que era antes. A língua e o rosto da minha mãe eram um só. Agora, com a extinção da língua dentro de mim, era como se a minha mãe tivesse morrido uma segunda vez. Era uma dor que me possuía como uma droga, não apenas quando estava acordado, mas quando dormia também. Durante o sono, andava numa fila de refugiados, todos gagos, e só os animais, cavalos, vacas e cães, dos dois lados da estrada, falavam numa língua diferente, como se a ordem das criaturas se tivesse invertido.

Aharon Applefel, Fragmentos de Uma Vida, Civilização Editora, 2005 (tradução do hebraico de Lúcia Liba Mucznick)
Amédée Ozanfant, 1920
Bouteille, flacon et violons
Na realidade, tudo é insólito para quem vê com olhos de ver. O sólito é apenas o habitual, e o habitual é apenas aquilo que a gente não pensa.

António José Saraiva, Paris, 9 de Maio de 1964, António José Saraiva e Luísa Dacosta: Correspondência, edição de Ernesto Rodrigues, Gradiva, 2011
Museu de História Natural, 1975
Nu, 1984





























“A fotografia é uma ação imediata; o desenho uma meditação.” 
Henri Cartier Bresson


Encontrado aqui

Tal como a natureza
possui um significado inevitável e franco,
ao conquistar-me, ele
confirma
a cândida lei do poder.
Ele é ferozmente livre
assim como um instinto vigoroso
a meio de uma ilha desabitada.
Ele limpa a poeira da rua
dos seus sapatos
com pedaços arrancados à tenda de Majnun...
Tal como uma alegre canção popular,
ele é bruto e apaixonado.
O meu amado
é uma pessoa simples
que eu
nesta estranha e ominosa terra
escondi como o último vestígio
de uma grande religião
no bosque dos meus seios.

Forrugh Farrokhzad
(tradução de Vasco Gato)



"A inocência do olhar é uma coisa extraordinariamente difícil de atingir. (...) A gente despir-se daquilo que sabe para perceber aquilo que vê." 

Gérard Castello Lopes, 15 de Fevereiro de 2011, em Pessoal e Transmissível 
"Sometimes you have to do something unforgivable just to go on living"


Carl Gustav Jung, no filme A Dangerous Method, de David Cronenberg 
Veja a nossa presunção: estamos convencidos de que os Gregos inventaram tudo; os Romanos divulgaram e institucionalizaram a civilização; os medievais iam dando cabo desta linda coisa. A Renascença veio tudo salvar. Os séculos XVII e XVIII esgotaram a filosofia e levaram-nos para a metafísica. Um certo homem no século XIX pôs tudo nos carris certos. E agora, é só ir por aí fora, na CERTEZA científica. Quando uns fizerem mais frigoríficos que outros, quando cada um comer à farta, está tudo resolvido.

António José Saraiva, Paris, 21 de Setembro de 1963, António José Saraiva e Luísa Dacosta: Correspondência, edição de Ernesto Rodrigues, Gradiva, 2011
POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA
               I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
                II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
17-6-1929
Álvaro de Campos, Livro de Versos, Estampa, 1997