As Sem Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sequer sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada momento de amor.

Carlos Drummond de Andrade, in O Corpo, Record, 1984


Mundo Grande, dito pelo autor

Carlos Drummond de Andrade completaria hoje 99 anos.
"As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrém. Os SS maus e estúpidos, os Kapos, os políticos, os criminosos, os proeminentes grandes e pequenos, até aos Häflinge* indiferenciados e escravos, todos os degraus da insana hirarquia criada pelos alemães, estão paradoxalmente unidos numa única desolação interior".

Primo Levi, Se Isto é um Homem, Editorial Teorema, 2001 (original 1958)
*prisioneiros







Considerada hoje obra fundamental sobre o Holocausto, o primeiro livro de Primo Levi, escrito em 1945, foi recusado por várias editoras, e só viu a luz do dia em 1958, pelas mãos de um pequeno editor de Turim.

Químico de formação, Primo Levi foi libertado de Auschwitz aos 24 anos. Das 650 pessoas que entraram com ele no campo da morte, 2 anos antes, foi um dos poucos sobreviventes do seu grupo, não mais que 20. E escreveu, dedicando grande parte da sua vida ao testemunho sobre o horror nazi. "As coisas que tinha vivido, sofrido, queimavam-me por dentro", disse. "Sentia-me mais próximo dos mortos do que dos vivos, sentia-me culpado de ser homem, porque os homens tinham construído Auschwitz e Auschwitz tinha engolido milhões de seres humanos, muitos amigos pessoais e uma mulher que estava próxima do meu coração. Parecia-me que me purificaria contando, sentia-me semelhante ao velho marinheiro de Coleridege..."

Ao contrário de Jorge Semprum, outro escritor ex-prisioneiro do III Reich, que optou por silenciar a escrita sobre o tema durante quase duas décadas para sobreviver (La Escritura o la Vida, Tusquets Editores, 1995), Primo Levi sobreviveu pela escrita. Pelo menos até 11 de Abril de 1987, quando foi encontrado morto na caixa do elevador do prédio onde morava. Elie Wiesel, também detido num campo de concentração, e distinguido nos anos 80 com o Nobel da Paz, declarou que "Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois".

O Holocausto é, provavelmente, a mais divulgada tragédia da História do século XX. As primeiras imagens foram mostradas no julgamento de Nuremberga, perante uma audiência perplexa e incontinentemente chorosa. Daí para a frente, não têm conta os documentários e filmes produzidos sobre o assunto.  Os campos de concentração nazis entraram em todas as casas ocidentais. Ninguém pode não saber. Mas surge a questão colocada por Walter Benjamin, pensador da Escola de Frankfurt que se recusou a emigrar para os Estados Unidos antes do agravamento da perseguição aos judeus e se suicidou à beira de uma fronteira na véspera de poder dar o salto. Benjamin defendeu, a propósito do advento da fotografia, que a reprodução das obras de arte aniquilava a sua originalidade, a sua aura, a sua autenticidade. (Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d'Água, 1992).  Parece ser consequência da reprodutibilidade o desgaste, seja da arte ou de qualquer outra coisa.

60 anos depois, chegar a Auschwitz, numa "carreira" cheia de turistas e atravessar o portão onde os nazis inscreveram a sádica máxima "O trabalho liberta" é uma experiência perturbadora, pela incapacidade de sentir verdadeiramente uma realidade que vimos tantas vezes reproduzida. O que se perde? A aura? (do horror) A originalidade? (da experiência) A autenticidade? (da homenagem?) Há, no entanto, paralelos irónicos: chegam pessoas aos magotes, falam diferentes línguas, e preocupam-se em comer (há hoje, no espaço, vários estabelecimentos para o efeito). Não imagino outra forma, se não aquela, organizada, massiva, impessoal, de mostrar ao mundo o museu do horror. Mas não deixa de ser estranho. E tantos horrores do século XX, igualmente graves, alguns mais duradouros, repetidos, hediondos, não têm sequer museu.

Ler Primo Levi resgata o passageiro do século XXI desta espécie de distanciamento incómodo. Relato breve, objectivo, humanista e indubitavelmente autêntico, em Se Isto é Um Homem,  Primo Levi não coloca apenas as questões filosóficas fundamentais, aquelas que eram inconvenientes de imprimir nos anos imediatamente a seguir ao final da Guerra (tão cheios de crimes dos vencedores).  Primo Levi conta. A aleatoriedade da sua sobrevivência. As regras do campo. O dia-a-dia dos prisioneiros. A sua desumanização. E depois de tantos filmes, eis o que surpreende: as botas eram de madeira, e os prisioneiros viviam permanentemente com os pés em ferida; todos os bens obrigatórios no campo, como a roupa, os atacadores, os sapatos e a marmita, eram cedidos pelos carrascos em quantidades mínimas e insuficientes para cumprir as normas, instigando um sistema de troca e comércio crudelíssimo entre os próprios prisioneiros; os oficiais alemães falavam sempre na sua língua e a maioria sofria o desespero de não entender as ordens cujo cumprimento ditava a sua sobrevivência; muitos homens morriam abraçados ao desconhecido com quem partilhavam a cama, por absoluta necessidade de calor humano.

Quando os nazis souberam que o exército russo se aproximava, destruiram parte dos quatro fornos crematórios, fugiram, e condenaram milhares de prisioneiros famélicos a uma longa marcha de quilómetros pelo Inverno polaco, esvaziando praticamente as três estruturas que compunham o complexo Auschwitz-Birkenau. Algumas centenas ficaram: os doentes, os moribundos, os que se conseguiram esconder - isto sabemos dos filmes. Primo Levi acrescenta o essencial para compreender o momento:  sozinhos, sem guardas, sem arame farpado, livres e ainda vivos, aqueles homens não se alegraram. Alguns não se mexeram. Continuaram todos a pensar que morreriam no dia seguinte.

Phillip Roth entrevistou Primo Levi em 1986. Visitou-o na fábrica onde trabalhava, como químico reformado mas ainda no activo. E escreveu:  "Não é provavelmente tão surpreendente quanto se possa pensar que os escritores se dividam, como o resto da humanidade, entre aqueles que ouvem e aqueles que não ouvem". Oiçamos Primo Levi, que sabia ouvir. Ele traz-nos tudo o que precisamos para evitar a desumanização da memória.
Ruy Belo, o poeta, 50 anos depois de O Grande Rui Eufrates, Câmara Clara de 30 Outubro de 2011, com Maria Teresa Belo
Se fôssemos capazes de raciocinar, deveríamos resignar-nos a esta evidência, de que o nosso destino é perfeitamente impossível de conhecer, de que qualquer conjectura é arbitrária e perfeitamente carente de qualquer fundamento real. Mas os homens só muito raramente são capazes de raciocinar, quando o que está em jogo é o seu próprio destino; preferem em todos os casos as posições extremas; por isso, conforme os seus caracteres, entre nós uns convenceram-se imediatamente de que tudo está perdido, que aqui não é possível viver e que o fim é inevitável e próximo; outros convenceram-se de que, apesar da extrema dureza da vida que nos espera, a salvação é provável e não está longe e, se tivermos fé e força, voltaremos a ver as nossas casas e as pessoas amadas. As duas classes, dos pessimistas e dos optimistas, não são porém tão distintas: não porque os agnósticos sejam muitos, mas porque a maioria, sem memória nem coerência, oscila entre as duas posições-limites, conforme o interlocutor e o momento.

Primo Levi, Se Isto É um Homem, Teorema, 2001 (or.1958) trad. Simonetta Cabrita Neto
O FOTÓGRAFO

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim enxerguei A Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakosvsi - seu criador.
Fotografei A Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros, in Ensaios Fotográficos, Record, 2007 (or. 2000)
Coimbra, 28 de Fevereiro de 1969

Que insondável mistério é um ser humano! Quanto mais vivo e convivo - a observar homens sãos e doentes- mais se arreiga no meu espírito a convicção de que nunca consegui conhecer nenhum. O que dizemos e o que fazemos pouco ou nada revelam de nós. Por mim falo. Converso, escrevo páginas maciças de confusão, actuo, pareço transparente. E quem um dia quiser saber o que fui, terá de me adivinhar....

Miguel Torga, in Diário, vols IX a XII, Publicações D. Quixote, 2011
Um cão, de raça do frio, vive junto a um armazém, preso a uma corrente, relativamente longa em relação à parede, muitíssimo curta em relação à natureza do bicho. É um animal tímido, embora o porte sugira o contrário. Como alguns tímidos de outras espécies, usa uma estratégia simples para evitar problemas: quando alguém novo se aproxima, faz-se barulhento. Demove a maior parte das abordagens e inspira até um certo medo. Os mais perserverantes rapidamente são premiados com uma manifestação mais franca da timidez estrutural: jamais responde a um chamado, recolhe-se alguns passos à passagem de quem quer que seja, mas aceita cordialmente umas festas.
Parece que este cão, que vejo diariamente, tem um passado mais feliz. Já viveu numa casa sem correntes de metal e passeava nos jardins públicos, como qualquer outro animal de estimação. E haveria tanto a dizer sobre a palavra "estimação" e a vulgaridade das trelas e das normas inter-espécies. Mas deixemo-nos disso. Voltemos ao passado, objectivamente mais feliz para ele. Num desses jardins públicos, costumava encontrar-se com uma cadela. Essa graciosa fêmea continua a viver nas redondezas e quando aqui passa, em passeio com a sua dona, vem cumprimentá-lo. É um momento de simples comunicação canina e é entusiasta. Se o entusiasmo alguma vez os levou a considerar namoro? Esclarece a dona: "Ela é operada, por isso não deixa. Quando algum macho se aproxima dela para isso, ela ladra. Ladra uma, ladra duas. Se eles insistem, ela vai e senta-se. Deste ela é muito amiga."
Não tenho nada a acrescentar.

  Alcochete, 2010


Your eyes are burning holes through me
I'm gasoline
I'm burning clean


R.E.M.
Franz Marc, Foxes, 1913
Franz Marc, Cat Behind a Tree, 1910
«O que quero eu, eu que quero conhecer-te?» O que aconteceria se decidisse definir-te como uma força e não como uma pessoa? E se eu próprio me situasse como uma outra força perante a tua força? Eis o que aconteceria: o meu outro definir-se-ia apenas pelo sofrimento ou prazer que me proporciona.

Roland Barthes, Fragmentos do Discurso Amoroso, Edições 70, 1995 (or. 1977)


















Lisboa, 2006
i.
Suponho que tu, como quase tudo, apenas me tenhas envelhecido.  Como os cigarros e os minutos. Onde está a prova de termos sido? Juízes calados dizem que sim. Contam-me como eras. Alto e direito, de uma brancura indiferente aos efeitos da meteorologia sobre a melanina dos outros. Não bem pálido, antes de uma lisura que só pode ser clara, com uma luz que só pode ser jovem. Eras no entanto demasiado para que te faltasse saúde. Para que te faltasse. Pouco mais se registou sobre ti, além de todas as tuas perguntas de criança, do teu corpo vulcânico, da forma feminina como abrias livros, como demoravas a reconhecer-te masculino no banho e como te preocupavas com a queda de um cabelo que não tinhas a certeza de ser teu. Nada mais se anotou sobre ti, e muito menos sobre mim nessa época, se é que é que realmente existi assim. Há uma dúvida quase epistemológica sobre tudo isto. Uma incerteza material. Resta obviamente a minha memória, e a essa falta ordem, sequência e ritmo. Falta-lhe ser um bom poema que arrume com toda a prosápia científica e nos esclareça de uma vez. 

ii.
Perto. Ideia esmagadora de ti. Esta dor não se abriu à catanada, nem é um móvel com parafusos. Não há boas imagens que a sirvam, portanto. Noto-a em tudo, mas sou cúmplice dela na sua invisibilidade. Fazemos de conta ou vamos para casa, porque temos medo. Mas nada faz mal à dor. Ela está serena no seu meridiano inalcançável. Irremediavelmente existo pelo corpo e aí reside a ironia. Apenas envelheci, mas não o suficiente. E a dor, tão minha, sofre deste paradoxo de ter o teu nome, a tua idade, os teus gestos de amor e de raiva, a tua respiração depois de mim. Viro-me muito na cama, movimento pendular que quer resolver o problema. Não te procuro já, porque entretanto deixei de te desejar. Pelo menos, limpidamente.

iii.
Vestimo-nos da mesma cor por acaso porque queríamos condizer. Na primeira noite, tivemos saudades um do outro até de manhã. Ficámos vorazes. Tentámos arrancar-nos a pele como quem esfrega uma nódoa. Parecia simples e até belo. Mas o gesto revelou-se. Somos sujos. Eu poluída de ti, acontecimento com tantas temperaturas. Sonho com o dia da tua morte, da minha morte, para que recordarmo-nos possa ser outra vez intenso. E assim de alguma forma, alguma coisa (uma frase?) nos devolva. Porque há estes desaparecidos, o bem e o mal que nos fomos, que deixaram de ter horas, voz, presença- mas que podem continuar a existir, talvez.

iv.
As mães dos desaparecidos torturados pelas ditaduras fazem reuniões ao domingo, normalmente em praças. Nessas manhãs, levantam-se e tomam banho, vestem-se e prepararam o pequeno-almoço, na loiça que lavaram na véspera, na cozinha que arrumam todos os dias. “O seu filho morreu”. Quando souberem como foi e delirarem de sofrimento com os detalhes, não vão cuidar da cozinha. Nem para comer, nem para a arrumar.
v.
Ouvi a tua infância. Era um pouco como todas, mas com mais pancada. Nunca te conformaste com a eventualidade, e muito menos com a evidência, da fragilidade. A minha, despudorada e nua, vigiaste-a noites seguidas. O amor e a vigília são sinónimos.


Lemo-nos textos, por respeito. Sabíamos que éramos  palavras, e não só as nossas. Repetias-me muito: tu sabes. Como se me pedisses que continuasse contigo, mesmo quando duvidavas do verbo.


Abriste-me uma porta e disseste: olha, este é o meu apelido. Há nas famílias uma corrente de acontecimentos que liga os mortos aos recém-nascidos. Não é o sangue, não é o nome, é a narrativa. Ninguém pode fugir de ser personagem. 
A dada altura, quiseste matar-me. Fim da história.  

vi.
A catana é um instrumento que serve para abrir caminho no mato ou para esventrar mulheres grávidas. Como eu gostava de encontrar a arma do crime e do parto.

vii.
Só acredito em coisas que vejo, tu sabes. E não posso garantir que tenha visto o teu abraço quente. Não sei bem como era a cegueira de te ter por dentro. A tua velhice precoce, dormi com ela mas não lhe vi a cor. Quis-te por tudo e por nada, com a parte de trás de todos os meus órgãos. Sobrevivi.

viii.
Envelhecer, a menos que se tenha acabado de sair de um campo de concentração, é apenas caminhar para a morte.
O texto é a única forma de identificar o sexo e a humanidade de alguém porque, ó poeta estranho, o sexo de alguém, é a sua narrativa. A sua, ou a que o texto conta, no seu lugar. Assim o sexo será como for o lugar do texto.

Quando se deseja alguém, como tu desejas Infausta, e ela deseja Johann, é o seu lugar cénico que se deseja,
os gestos do texto que descreve no espaço
e chamar-lhe
precioso companheiro;
de mim, direi que fui uma vez enviado,
trouxeste a frase que nunca antes leras,
o meu corpo a disse, e não reparaste que ficaste com ela escrita.

Maria Gabriel Llansol, in Lisboaleipzig II. O Ensaio de Música, Rolim, 1995

Henri Cartier Bresson, Itália, 1933
A arte de vanguarda produzida nas últimas três ou quatro décadas do século XX é, muitas vezes, uma coisa medíocre, ininteligível e desinteressante. A tremenda confusão de valores a que se chegou deu lugar a uma floresta de equívocos cada vez mais emaranhada. (...)
Não viria daí grande mal ao mundo, se muitas dessas produções de artístico arreganho não tivessem passado a existir na promiscuidade escandalosa de um circuito que, hoje em dia, passa pelos próprios artistas, pelos galeristas, pelos críticos de arte, pelos coleccionadores, pelos museus, pelos consultores de uns e doutros, pelas leiloeiras, pelas instituições financeiras, e provavelmente por mais entidades, incluindo figuras da política.


Habla vaga

La frase "estoy mortalmente herido" debe de ser muy antigua en todos los idiomas, no tanto como los primeros hombres mortalmente heridos, desprovistos del habla, pero muy próxima a ellos. Estoy mortalmente herido. A veces se lo dice uno a sí mismo con la extrañeza que proporciona asistir al propio acabamiento y a veces al compañero de batalla, al médico castrense, al brujo, al sacerdote. La habrán pronunciado héroes y cobardes, creyentes y agnósticos, notarios y aparejadores, no siempre en su sentido literal, pues posee también una carga metafórica muy útil para expresar pérdidas sentimentales importantes. Ahora mismo, mientras usted lee la oración "estoy mortalmente herido", miles de seres humanos la estarán pronunciando también en las escaleras del metro de una gran urbe donde han sido apuñalados, al pie de un tanque donde han sido heridos o en el bar en el que acaban de ser abandonados. Estoy mortalmente herido. ¡Cuánta gente mortalmente herida mientras nosotros leemos el periódico!

El caso es que había un individuo que no pronunciaba bien dicha oración gramatical. En vez de "mortalmente herido", le salía "mortmente herido", por lo que acudió a la consulta de un logopeda que le recomendó un amigo de toda la vida. Una vez diagnosticado ("habla vaga" o algo semejante), se le recomendó la práctica de una serie de ejercicios que debía repetir cada día frente al espejo. Así lo hizo el hombre, que primero logró pronunciar algo parecido a "mortlmente" hasta que a base de trabajar y trabajar le salió un mortalmente normal, como el de usted (aunque no como el mío, pues tengo problemas con la ele). Cuando el logopeda, tras felicitarle por su tenacidad, le dio el alta, el hombre preguntó si ahora que decía bien la frase estaba más o menos mortalmente herido que antes, a lo que el especialista no supo qué decirle.

Juan Jose Millás, aqui

















Emerge el pasado nazi de los dueños de BMW, El País, 15 de Outubro 2011
És como uma terra
que nunca ninguém disse
Não esperas nada
a não ser a palavra
que brotará do fundo
como fruto entre os ramos.
Um vento que se aproxima.
Coisas secas e mortas
embaraçam-te e vão no vento.
Membros. Palavras antigas.
Tremes no Verão.

29 de Outubro de 1945

Cesare Pavese, in O Vício Absurdo, & Etc, 1990
















Mouriscas, 2009
Creio ter reparado em Sarah, porque ela era feliz; nesse tempo, o sentido de felicidade ia desaparecendo na tormenta que se aproximava. Encontrava-se nos bêbados e nas crianças, e raras vezes alhures. Simpatizei logo com ela, porque me disse ter lido os meus livros sem os misturar com a pessoa - e logo me senti tratado mais como um ser humano do que como um escritor. Não fazia a mínima ideia de me apaixonar por ela. Antes de mais nada era bonita, e mulheres bonitas, especialmente se ainda são inteligentes, provocam-me um agudo sentimento de inferioridade. Não sei se os psicólogos já classificaram o complexo de Cophetua, mas, pela minha parte, sempre senti dificuldade em experimentar desejos sexuais , sem a consciência de uma qualquer superioridade física ou mental. Dessa primeira vez, só reparei na beleza, no ar feliz, e na maneira, que ela tinha, de nos tocar como se nos amasse.

Graham Greene, O Fim da Aventura, Asa, 1995 (or. 1951), tradução de Jorge de Sena (de acordo com 2ª edição de Estúdios Cor, 1958)
Dizem que chorei três semanas em pé, hábito que perdi, felizmente. Não voltei a chorar na vertical. Chamei pelo pai e pela mãe - estou segura de que a sensibilidade nunca me deu para diminutivos e aos quatro anos não bebia cafezinhos. Chorava para resistir. Tinha comigo poucas palavras e demasiada ternura para que o talento da agressividade fosse possível, talento aliás que ainda hoje domino mal. Domino mal o domínio. Questão antiga, do jardim de infância (quase todas as questões antigas são infantis). Não sei por que lhe chamam jardim. O meu tinha salas que esperam. Cabides colectivamente disformes. Um aquecedor a gás. Incêndios. Imaginação. Via labaredas a comerem os casacos, e os casacos já tinham comido o meu nome, e o meu nome só chorava. Ali cresceram crianças, comparáveis a flores formosas, e deve ser por isso que lhe chamam jardim. Quanto a mim, não fui flor e jamais desenvolvi amor à botânica. Resisti quanto pude. Fiz finca-pé com os dias. Com as listas e os desenhos na parede. Com as cadeiras uma ao lado da outra. Com as batas bordadas, de um azul operário. Com os apelidos. Com os lugares que eram apelidos. Com a plasticina. Com a idade. Para trás e para a frente. Gostava dos baloiços. Mas vi logo que apenas dão esperança. Para o movimento mais largo, é preciso continuar a resistir. Ou a chorar.


No alarms and no surprises, please
Radiohead
Desenho de Paulo Van Poser
Por aí

Dois fenómenos estranhos, aparentemente contraditórios:

Numa paragem de autocarro, num fim de dia normal, nem chuvoso, nem frio, nem especialmente quente, normal, várias pessoas compõem uma fila. Com o passar dos minutos, a fila aumenta. A dada altura está muita gente à espera. Finalmente, aparece o autocarro. Logo a seguir, vem outro, a mesma carreira. O primeiro vem bastante mais cheio. Todas as pessoas que estão ali conseguem ver os dois autocarros. A maioria entra no primeiro.



Dois balcões para a mesma função, por exemplo, uma bilheteira de cinema. Num dos balcões, estão cinco pessoas à espera de ser atendidas. O outro está vazio. Não há fila única, trata-se apenas de um grupo. Chega alguém, olha, e coloca-se nessa fila, a maior.

Chegar primeiro e ter contacto com desconhecidos são, para tantos, coisas tão interessantes. Compulsivas mesmo.
Todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Mia Couto, Jesusalém, Editorial Caminho, 2009
 LIKING IS FOR COWARDS, GO FOR WHAT HURTS
(…)  
To speak more generally, the ultimate goal of technology, the telos of techne, is to replace a natural world that’s indifferent to our wishes — a world of hurricanes and hardships and breakable hearts, a world of resistance — with a world so responsive to our wishes as to be, effectively, a mere extension of the self.

Let me suggest, finally, that the world of techno-consumerism is therefore troubled by real love, and that it has no choice but to trouble love in turn.

(…)
 

A related phenomenon is the transformation, courtesy of Facebook, of the verb “to like” from a state of mind to an action that you perform with your computer mouse, from a feeling to an assertion of consumer choice. And liking, in general, is commercial culture’s substitute for loving.

The striking thing about all consumer products — and none more so than electronic devices and applications — is that they’re designed to be immensely likable. This is, in fact, the definition of a consumer product, in contrast to the product that is simply itself and whose makers aren’t fixated on your liking it. (I’m thinking here of jet engines, laboratory equipment, serious art and literature.)

But if you consider this in human terms, and you imagine a person defined by a desperation to be liked, what do you see? You see a person without integrity, without a center. In more pathological cases, you see a narcissist — a person who can’t tolerate the tarnishing of his or her self-image that not being liked represents, and who therefore either withdraws from human contact or goes to extreme, integrity-sacrificing lengths to be likable.


If you dedicate your existence to being likable, however, and if you adopt whatever cool persona is necessary to make it happen, it suggests that you’ve despaired of being loved for who you really are. And if you succeed in manipulating other people into liking you, it will be hard not to feel, at some level, contempt for those people, because they’ve fallen for your shtick. You may find yourself becoming depressed, or alcoholic, or, if you’re Donald Trump, running for president (and then quitting).

Consumer technology products would never do anything this unattractive, because they aren’t people. They are, however, great allies and enablers of narcissism.

(…)


The simple fact of the matter is that trying to be perfectly likable is incompatible with loving relationships. Sooner or later, for example, you’re going to find yourself in a hideous, screaming fight, and you’ll hear coming out of your mouth things that you yourself don’t like at all, things that shatter your self-image as a fair, kind, cool, attractive, in-control, funny, likable person. Something realer than likability has come out in you, and suddenly you’re having an actual life.

Suddenly there’s a real choice to be made, not a fake consumer choice between a BlackBerry and an iPhone, but a question: Do I love this person? And, for the other person, does this person love me?


There is no such thing as a person whose real self you like every particle of. This is why a world of liking is ultimately a lie. But there is such a thing as a person whose real self you love every particle of. And this is why love is such an existential threat to the techno-consumerist order: it exposes the lie.

This is not to say that love is only about fighting. Love is about bottomless empathy, born out of the heart’s revelation that another person is every bit as real as you are. And this is why love, as I understand it, is always specific.

(…)


The big risk here, of course, is rejection. We can all handle being disliked now and then, because there’s such an infinitely big pool of potential likers. But to expose your whole self, not just the likable surface, and to have it rejected, can be catastrophically painful. The prospect of pain generally, the pain of loss, of breakup, of death, is what makes it so tempting to avoid love and stay safely in the world of liking.




But when you go out and put yourself in real relation to real people, or even just real animals, there’s a very real danger that you might love some of them.

And who knows what might happen to you then?



Leave your home
Change your name
Live alone
Eat your cake
(...)
ALL THE VERY BEST OF US STRING OURSELVES UP FOR LOVE
Barcelona, 2009
(...)
Amor que faz falar mesmo o silêncio
que abra na manhã um espaço para o sol
égira talvez esse loureiro talvez laura
vinte e um anos de amor vinte e um anos de silêncio
amor apenas amor nada quase nada
concebido e nascido numa terra de exílio
amor nocturno de árvores e fontes
palavra aprendizagem do silêncio
sei o teu nome sei tudo de ti
(...)

Ruy Belo, "A Margem da Alegria", in Todos os Poemas, Assírio e Alvim, 2000
Ela não via ausência em nada. Buraco ou morte, falta ou dor, palavras que podiam continuar a existir, mas não respiravam. Discreta asfixia derramada sobre o mundo. Os mesmos lugares, contaminados pela novidade de tão urgente reconfiguração da semântica. Sentidos, todos num feliz ao contrário. Não passou muito tempo e as frases fizeram-se seculares, ciência secreta entre duas idades indefinidas. As frases saíam das bocas desembarcadas ali. Ali, em corpos tão excitados como serenos - uma aberração erótica. Certo dia, ela enterneceu-se com pequenas naturezas mortas: sapatos descalçados, uma camisa branca pendurada no armário, um casaco pousado na cadeira. Nestes seres sem vida, que guardavam a passagem óbvia de alguém que nunca deixou de a escandalizar, provava-se a ausência do nada. Ele estava ali. Até que os sapatos, a camisa, o casaco começaram a esperar. Esperaram e esperaram e esperaram. Ninguém voltou. Só as palavras vulgares, exactamente coincidentes com o mundo, cheio de nada.
FIDELIDADE
                                                                                    A D. Miguel de Unamuno

É necessário dizer sim a todos
que nos transcendem,
que nos verberam o tempo, o espaço,
mas que nos querem.
É dizer um não redondo
a quem nos mente
mesmo por bem.

Exemplo: «Maria, não me mates
que sou
tua mãe!»
É dizer um não a todos
que nos mentiram
também redondamente
se a memória os não esquece.
É necessário amar o próximo,
mas só aquele
que dá pelo nome.
É ser o que nós queremos,
limite máximo
do que já somos.
É sentir...ó meus anónimos
a que devo tudo:
minhas calças, minhas núvens
que me fazem «todo
un hombre!

Ruy Cinatti, in Conversa de Rotina, Sociedade da Expansão Cultural, 1973
(por mim, para o Mário Alberto 1925-2011)
A CARÊNCIA

Nada sei sobre pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas acho que a minha solidão devia ter asas.

Alejandra Pizarnik, in Alejandra Pizarnik. 30 Poemas, Língua Morta, 2011
Jorge Semprun nasceu em Madrid a 10 de Dezembro de 1923. Filho de embaixador, desloca-se com a família para Paris, a seguir à Guerra Civil Espanhola, cidade onde vem a estudar Filosofia, na Sorbonne. Em 1942, ingressa no Partido Comunista Espanhol. Um ano depois, em plena II Guerra Mundial, é denunciado e entregue às SS. Tinha 20 anos. Torturado durante vários dias, é deportado para o campo de Buchenwald, na Alemanha - um campo destinado a opositores políticos do nazismo, onde os detidos eram distinguidos no uniforme pelas iniciais do seu país de origem.
Semprum conta que as latrinas eram ponto de encontro privilegiado de conspiração política, mas também o único local onde a poesia entrava. Ali, os detidos encontravam-se para dizer versos que sabiam de cor - uma forma de sair por minutos de um universo de morte e horror. Semprum passou dois anos em Buchenwald, calvário que só terminaria com a chegada dos Aliados, a 12 de Abril de 1945.
Até 1952 trabalhou como jornalista para a Unesco. Prosseguiu a sua militância comunista e viveu vários anos na clandestinidade, com o nome de Féderico Sanchez, e foi expulso do partido em 1965. Na Espanha democrática, foi Ministro da Cultura de Filipe Gonzaléz entre 1988 e 1991.
O campo de concentração e a clandestinidade são os eixos principais da sua obra, que conta com títulos em francês e espanhol e colaborações para o cinema. Embora alguns dos seus livros tenham sido editados em Portugal, actualmente não estão disponíveis no mercado.
Uma vida dedicada à escrita, com longos períodos de silêncio. Desde que foi libertado do campo de concentração, Semprum esteve 16 anos sem publicar.  El Largo Viage, estreia sobre o tema, é editado em 1961. Muitos se seguiram.
Aquele que foi considerado o escritor da memória morreu em Paris no dia 7 de Junho de 2011. A ele é atribuída a frase: "Estoy seguro que mi muerte me recordará de algo..."

LA ESCRITURA O LA VIDA

Necessitaría varias vidas para poder contar toda esa muerte. Contar esa muerte hasta el final, tarea infinita.
(p. 48)

O "mal radical"
En Buchenwald, los S.S, los kapos, los soplones, los torturadores sádicos, formaban parte de la especie humana al mesmo título que los mejores, los más puros de nosotros, de entre las víctimas... La frontera del Mal no es la de lo inhumano, es algo totalmente distinto. De ahí la necessidad de una ética que transcienda ese fondo originário donde arraiga tanto la liberdad del Bien como del Mal... Una ética, por lo tanto, que se libere para siempre de las teodiceas y de las teologias, puesto que Dios, por definicion, y no será porque los tomistas no lo hayan proclamado hasta la saciedad, es inocente del Mal. Una ética de la Ley y de su transcendencia, de las condiciones de su dominación, por lo tanto de la violencia que le resulta precisamente necessaria...
(p.180/181)

A libertação
He tenido una idea, de golpe- se se puede lllamar idea a esta bocanada de calor, tónica , a este aflujo de sangre,a este orgullo de un conocimiento del cuerpo, pertinente - la sensación, en cualquier caso repentina, muy forte, no de haberme livrado de la muerte, sino de haverla atravessado. De haber sido, mejor dito, atravessado por ella. De haberla vivido, en cierto modo. De haber regressado de la muerte como quien regresa de un viaje que le ha transformado: tranfigurado, tal vez.
He compreendido de repente que tenían razon esos militares para asustarse, para evitar mi mirada. Pues no habia realmente sobrevivido a la muerte, no la habia evitado. No me habia librado de ella. La habia recorrido, más bien, de una punta a outra. Habia recorrido sus caminos, me habia perdido en ellos y me havia vuelto a encontrar, comarca inmensa dondo chorrea la ausencia. Yo era un aparecido, en suma.
Siempre assutan los aparecidos.
(...)
Resultaba estimulante imaginar que el hecho de envejecer, de ahora en delante, a partir de ese día fabuloso de abril, no iba a acercarme a la muerte, sino por el contrario, a alejarme de ella.
(pág 27)

Y sin duda yo mesmo sabía, desde el fondo más arcaico de un conocimiento visceral, que iba a revivir, a retomar o curso de una vida posible. Incluso lo estava deseando, ansiando violentamente ese porvenir: las músicas, los soles, los libros, las noches en vela, las mujeres, la soledad. Sabía que era necesario y justo revivir, que nada iba a imperdirmelo. Pero este conocimiento ávido, esta sabedoria del cuerpo, no me ocultava la certidumbre fundamental de mi experiencia. De mis vinculos con la memoria de la muerte, para siempre jamás.
(p.136/137)


Querer morrer
Solo a partir de la vida, del conocimiento de la vida, cabe tener deseo de morir. Todavia sigue siendo un reflejo de vida ese deseo mortífero.
(p.55)

Durante uns segundos - un tiempo infinito, la eternidad del recuerdo - había vuelto a la realidad del campo, a una noche de alarma aérea. Oía la voz alemanda dando la orden de apagar el crematorio, pero no experimentava ninguna angustia. Al contrario, me invadia primero una especie de serenidad, una especie de paz: como se recuperara una identidad, una transparencia para conmigo mismo en un lugar habitable. Como si - y sé que esta afirmación pueda parecer indecente, exagerada al menos, pero es veridica - como si la noche sobre Ettersberg, las llamas del crematorio, el sueño agitado de los compañeros en los camastros, el débil estertor de los moribundos, fueron una especie de patria, el lugar designado de una plenitud, de una coherencia vital, pese a la voz autoritaria que repetía con tono irritado: Krematorium, ausmachen! Krematorium, auschmachen!
(pág. 169/170)

Sólo la muerte voluntaria, deliberada, podria distrairme de mi dolor, librarme de él.
(p.172)

Pero tal vez la muerte voluntaria no séa más que una especie de vertigo, nada más. No sabria decir con precisión qué me había sucedido. Más adelante, al cabo de unos pocos minutos deliciosos de vacío, opté por la hipótesis del desvanecimiento. No hay cosa más tonta que un suicidio fracasado. Un desvanecimiento no resulta particularmente glorioso, es verdade, pero es mucho menos molesto a la hora de asumirlo.
(p.227)

A escrita ou a vida
Habra supervivientes, por supuesto. Yo, por exemplo. Aqui estoy como superviviente de turno, oportunamente aparecido antee sos tres oficiales de una missión aliada para contarles lo del humo del crematorio, el olor a carne quemada sobre el Ettersberg, las listas interminables bajo la nieve, los trabajos mortíferos, el agotamiento de la vida, la esperaza inagotable, el salvajismo del animal humano, la grandeza del hombre, la desnudez fraterna y devastada de la mirada de los compañeros.
Pero se puede contar? Podrá contarse alguna vez?
(p.25)


El horror no era el Mal, no era su esencia, por lo menos. No era más que el envoltorio,el aderezo, la pompa. La aparencia, en definitiva. Cabria pasarse horas testimonando acerca del horror cotidiano sin llegar a rozar lo esencial de la experiencia del campo.
(p.103)

Habia sobrevalorado mis fuerzas. Había pensado que iba a volver a la vida, olvidar en el vivir cotidiano los años de Buchenwald, dejar de tenerlos en cuenta en mis conversaciones, mis amistades, y levar a buen fin, pese a todo, el proyeto de escritura que tanto me interessaba. Habia sido suficientemente orgulloso como para pensar que iba a poder manejar esta esquizofrenia concertada. Pero resultava que escribir, en cierto modo, consistia en negarse a vivir.
En Ascona, pues, bajo un sol de invierno, decidi optar por el silencio rumoroso de la vida en contra del linguaje asesino de la escritura. Escogí el olvido, dispuse, sin demasiada complacencia para con mi propria identidad, fundamentada esencialmente en el horror - y sin duda, el valor - de la experiencia del campo, todas las estratagemas de la amnesia voluntaria, cruelmente sistemática.
(p. 244)

Jorge Semprum, La Escritura o La Vida, Tusquets Editores, 2010 (1ª edição: 1995)
XXXIV. INQUIRIÇÃO

Pergunto porque escrevo
versos, que crueldade
ou insânia comigo tenho
e lego, envergonhado
por má, despudorada acção.

Pergunto porque revolvo
o erro inicial, o dia, a noite,
porque cresci e enruguei
foi velho em jovem
e velho por jovem me trocava.

Pergunto porque escrevo
com um chicote versos, tão frágeis
e humildes, escravizados,
e instilo numa só gota
a criação da chuva e a morte das sementes.

Pergunto porque planto
árvores com desafio e angústia
e a atormenta a perfídia,
a devoração de si e outrem,
a alma frustrada dos animais.

Pergunto porque não perdoo,
nem admito nem tolero
o que não sei e, pior, aterra
e não deixo, a Deus e a mim, em paz
na unidade calcária de todas as palavras.

António Osório, in Luz Fraterna- Poesia Reunida (1965-2009), Assírio e Alvim, 2009
XVII. O CONTRÁRIO

O contrário
da histeria, da barbárie.

Ave migrando
discretamente
sobre continentes.

António Osório, in Luz Fraterna- Poesia Reunida (1965-2009), Assírio e Alvim, 2009














Lisboa, 2011














Lisboa, 2011
Aquilo

A escrita. Dito assim, parece sério. E na verdade é. Argumentos históricos: panfletos mudaram regimes, artigos de jornal derrubaram presidentes, cartas de amor construíram mundos inteiros. E arrasaram impérios. Argumentos literários: ao tempo não sobreverirá nenhum gráfico económico. É uma tecnologia inigualável, a escrita. É séria sim. Ou não. Viveremos privados dela, todos, sem excepção. Nada na nossa animalidade sobrevivente, na nossa natureza gregária, rotineira, reprodutiva se alterará por ela ou pela sua ausência. É uma espécie de mulher principal com quem ninguém precisa de casar. Uma amante inesquecível mas dispensável. Se nos acontecer, inesperadamente ou após dedicada caçada, melhor. Se não, continuaremos – essa fatalidade sobre a qual há pouco a dizer. Mas um texto, acabado, é tão nosso como os dedos ou os fluidos. Cuidamo-los ou odiamo-los, mesquinhamente, grandiosamente. Só no que nos pertence de facto somos capazes de escalas tão díspares. E depois, há o medo. E sobre esse, retiro todos os plurais. A palavra por inventar não existe, já se sabe, ou é apenas uma vulgaridade de estilo. Mas o que fazer àquele novo membro que ia nascer se tivesse escrito aquilo? Aquilo - um feto secreto que dispensou fecundação, amor ou brutalidade para existir e que só se revela se o dermos à luz. E a luz é incerta, e o momento é frágil, e os dias são tanta coisa além desse outro que queríamos ser. Sinto-me grávida de mim própria constantemente. Mas eu tenho medo d’ aquilo. Há vaidade, há uma indigna e ridícula vaidade, no terror de ficar mais feia. Pode-se escrever, pode não se escrever, disse um poeta. Devia saber do que falava.