i.
Suponho que tu, como quase tudo, apenas me tenhas envelhecido.  Como os cigarros e os minutos. Onde está a prova de termos sido? Juízes calados dizem que sim. Contam-me como eras. Alto e direito, de uma brancura indiferente aos efeitos da meteorologia sobre a melanina dos outros. Não bem pálido, antes de uma lisura que só pode ser clara, com uma luz que só pode ser jovem. Eras no entanto demasiado para que te faltasse saúde. Para que te faltasse. Pouco mais se registou sobre ti, além de todas as tuas perguntas de criança, do teu corpo vulcânico, da forma feminina como abrias livros, como demoravas a reconhecer-te masculino no banho e como te preocupavas com a queda de um cabelo que não tinhas a certeza de ser teu. Nada mais se anotou sobre ti, e muito menos sobre mim nessa época, se é que é que realmente existi assim. Há uma dúvida quase epistemológica sobre tudo isto. Uma incerteza material. Resta obviamente a minha memória, e a essa falta ordem, sequência e ritmo. Falta-lhe ser um bom poema que arrume com toda a prosápia científica e nos esclareça de uma vez. 

ii.
Perto. Ideia esmagadora de ti. Esta dor não se abriu à catanada, nem é um móvel com parafusos. Não há boas imagens que a sirvam, portanto. Noto-a em tudo, mas sou cúmplice dela na sua invisibilidade. Fazemos de conta ou vamos para casa, porque temos medo. Mas nada faz mal à dor. Ela está serena no seu meridiano inalcançável. Irremediavelmente existo pelo corpo e aí reside a ironia. Apenas envelheci, mas não o suficiente. E a dor, tão minha, sofre deste paradoxo de ter o teu nome, a tua idade, os teus gestos de amor e de raiva, a tua respiração depois de mim. Viro-me muito na cama, movimento pendular que quer resolver o problema. Não te procuro já, porque entretanto deixei de te desejar. Pelo menos, limpidamente.

iii.
Vestimo-nos da mesma cor por acaso porque queríamos condizer. Na primeira noite, tivemos saudades um do outro até de manhã. Ficámos vorazes. Tentámos arrancar-nos a pele como quem esfrega uma nódoa. Parecia simples e até belo. Mas o gesto revelou-se. Somos sujos. Eu poluída de ti, acontecimento com tantas temperaturas. Sonho com o dia da tua morte, da minha morte, para que recordarmo-nos possa ser outra vez intenso. E assim de alguma forma, alguma coisa (uma frase?) nos devolva. Porque há estes desaparecidos, o bem e o mal que nos fomos, que deixaram de ter horas, voz, presença- mas que podem continuar a existir, talvez.

iv.
As mães dos desaparecidos torturados pelas ditaduras fazem reuniões ao domingo, normalmente em praças. Nessas manhãs, levantam-se e tomam banho, vestem-se e prepararam o pequeno-almoço, na loiça que lavaram na véspera, na cozinha que arrumam todos os dias. “O seu filho morreu”. Quando souberem como foi e delirarem de sofrimento com os detalhes, não vão cuidar da cozinha. Nem para comer, nem para a arrumar.
v.
Ouvi a tua infância. Era um pouco como todas, mas com mais pancada. Nunca te conformaste com a eventualidade, e muito menos com a evidência, da fragilidade. A minha, despudorada e nua, vigiaste-a noites seguidas. O amor e a vigília são sinónimos.


Lemo-nos textos, por respeito. Sabíamos que éramos  palavras, e não só as nossas. Repetias-me muito: tu sabes. Como se me pedisses que continuasse contigo, mesmo quando duvidavas do verbo.


Abriste-me uma porta e disseste: olha, este é o meu apelido. Há nas famílias uma corrente de acontecimentos que liga os mortos aos recém-nascidos. Não é o sangue, não é o nome, é a narrativa. Ninguém pode fugir de ser personagem. 
A dada altura, quiseste matar-me. Fim da história.  

vi.
A catana é um instrumento que serve para abrir caminho no mato ou para esventrar mulheres grávidas. Como eu gostava de encontrar a arma do crime e do parto.

vii.
Só acredito em coisas que vejo, tu sabes. E não posso garantir que tenha visto o teu abraço quente. Não sei bem como era a cegueira de te ter por dentro. A tua velhice precoce, dormi com ela mas não lhe vi a cor. Quis-te por tudo e por nada, com a parte de trás de todos os meus órgãos. Sobrevivi.

viii.
Envelhecer, a menos que se tenha acabado de sair de um campo de concentração, é apenas caminhar para a morte.

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