A neve e o amor

Neste dia de calor ardente, estou esperando a neve.
Sempre estive à sua espera.
Quando menino, li Recordações da Casa dos Mortos
e vi a neve caindo na estepe siberiana
e no casaco roto de Fédor Dostoievski.
Amo a neve porque ela não separa o dia da noite
nem afasta o céu das aflições da terra.
Une o que está separado:
os passos dos homens condenados ao gelo escurecido
e os suspiros de amor que se perdem no ar.
É necessário ter um ouvido muito afiado
para ouvir a música da neve caindo, algo quase silencioso
como o roçar da asa de um anjo, caso os anjos existissem,
ou o estertor de um pássaro.
Não se deve esperar a neve como se espera o amor.
São coisas diferentes. Basta abrirmos os olhos para ver a neve
cair no campo desolado. E ela cai em nós, a neve branca e fria
que não queima como o fogo do amor.
Para ver o amor os nossos olhos não bastam,
nem os ouvidos, nem a boca, nem mesmo os nossos corações
que batem na escuridão com o mesmo rumor

Lêdo Ivo

Eugeni Forcano

Selecção a partir do Guia para viajar pelas flores do sentido

O que é a rosa?
_____cabeça cultivada para corte.


O que é a pobreza?
_____tumba ambulante sobre a terra.


O que é a sinceridade?
_____segundo sol.


O que é a suposição?
_____mão que apalpa a escuridão.


O que é a noite?
_____papeleiro que vende os livros das estrelas.


O que é a oração?
_____nuvem celestial
_____evaporada da água das palavras.


O que é a fantasia?
_____perfume da realidade.


O que é a história?
_____cego a tocar tambor.


O que é o grito?
_____ferrugem na voz.


O que é o eco?
_____corpo abatido pela viagem
__________desaparece
__________desapareceu.


O que é a coincidência?
_____fruto na árvore do vento
_____caindo entre as mãos
_____sem se saber.


O que é o sonho?
_____faminto que não pára
_____de bater à porta da realidade.


O que é a surpresa?
_____pássaro
_____que escapou da gaiola da realidade.


O que é a metáfora?
_____asas aliviando
_____no peito das palavras.


O que é a esperança?
_____descrição da morte
_____na língua da vida.


O que é o beijo?
_____colheita visível
_____de fruto invisível.


O que é a lágrima?
_____guerra perdida pelo corpo.


O que é a memória?
_____casa habitada só
_____por coisas ausentes.


O que é a morte?
_____carro que leva
_____do útero da mulher
_____ao útero da terra.


O que é o desespero?
_____descrição da vida na língua da morte.

- Adonis
(tradução de Michel Sleiman)
in [poemas], Companhia das letras
Encontrado aqui

RETRATO DE MULHER- SÉCULO XIX

A sua voz é sufocada pelo vestido. O seu olhar
segue o gladiador. Depois, ela própria
está na arena. É uma mulher livre? Uma moldura dourada
                                 estrangula o retrato.


Thomas Transtromer, in 50 Poemas, Relógio d'Água, 2012 (tradução de Alexandre Pastor)
A OUTRA PORTA DO PRAZER

A outra porta do prazer,
porta a que se bate suavemente,
seu convite é um prazer ferido a fogo
e, com isso, muito mais prazer.

Amor não é completo se não sabe
coisas que só o amor pode inventar.
Procura o estreito átrio do cubículo
aonde não chega a luz, e chega o ardor
de insofrida, mordente
fome de conhecimento pelo gozo.


Carlos Drummond de Andrade, in O Amor Natural, Editora Record, 1999
Nosso Tempo

I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
1
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.

IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que-bem-me-importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.


Carlos Drummond de Andrade, in Antologia Poética, Editora Record, 2009

Les bons chats


Nascidos no esconso, pela noite das ervas
até que o pêlo aqueça e abram os olhos
à linha vidrada — teia onde os dedos,
dados só a partir pedra, se quedaram

no veludo. Assim vi o prometido
anjo na voluta volvida ao balcão;
verdes anos se escaparam sobre o rio,
vindo enfim sangrar de manso à minha beira

Custa morrer, mesmo se as telhas não voam —
nem à volta da caldeira o aeroplano
perde a asa pobre, que a amada escondeu

dos poços d’ar. E se alguém pergunta as horas
vou correr o alambel de ouro baço:
para a mais desabalada eternidade


6. Nov. 2012

De novo Ulisses a ajudara, sobretudo com o tom da sua voz que era muito rica em inflexões.  E Lóri pensou que talvez essa fosse uma das experiências humanas e animais mais importantes: a de pedir mudamente socorro e mudamente esse socorro ser dado. Pois, apesar das palavras trocadas, fora mudamente que ele a havia ajudado. Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada.

Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Relógio d'Água, 1999 (or. 1969)

Joaquín Sorolla y Bastida (1863-1923)
As Idades do Mar, Museu Gulbenkian

A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos, que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo,no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem. 
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. 
Mas uma alegria fatal - a alegria é uma fatalidade- já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta do seu mais adormecido sono secular. 
E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda - e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto. 
O caminho lento aumenta sua coragem secreta - e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por instantes cega, toda escorrendo. Espantada, de pé, fertilizada.
Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milénios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol, quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicações, nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo. 
E era isso que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.

Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Relógio d'Água, 1999 (or. 1969)


Naquele instante
Amor só vem mais tarde, amar
só vem depois, amor é quando

tudo se foi, virá no próximo
trem, talvez no ano que vem

tudo será, por ora, pressentimento,
presságio, bilhete em branco do bem
gratuito para depois de gastos vultuosos
tributos de desamor e de nada.

Amarmos começa no fim? Amor
se escreve ao contrário? Roma,
porém, não abrirá palácios senão,
quem sabe, no próximo feriado.

Moroso, é após tudo pronto
o amor quando, tardiamente,
já não damos por nada ou
damos só tempo ao tempo.





Eucanãa Ferraz, in Sentimental, Companhia das Letras, 2012
PORMENOR

Um grupo de marinheiros sugere um convento cheio de terra, por detrás do mar, como um fantasma devolvido à terra.

Morre no mar a estrada de santiago, morrem as águas nos ventos e nas mãos pedaços de inverno. Um lobo e um barco encontram-se num sonho pela primeira vez.

Soldados cegos invertem o coração e nos campos os velhos contam histórias de prisioneiros enquanto as mulheres despem o nome do noivo e tomam um moço na cama.

Do outro lado do horizonte, geme agitada a cidade onde os homens se ligam por um entendimento de poeira e dons. 

Fernando Alves dos Santos, in Surrealismo/Abjeccionismo, Selecção de Mário Cesariny, Edições Salamandra, 1992 (edição fac-similada do original de 1963)
Lambe-te o fogo cada ruga e pêlo,
e a água onde mergulhas logo encerra 
em fresca e fina luva o corpo inteiro 
e sem pudor algum te abraça e beija. 
Mesmo o vulgar sabão, no tanque absorto, 
pela nudez da carne se insinua 
e entre as coxas flutua, como um peixe 
mais branco, que outra sombra continua. 
Mas eu, quando me cubro do teu rosto 
e sou somente de água e fogo feito, 
melhor ainda te conheço e quero, 
e nada no teu corpo me é alheio: 
em cada grão de pele te desejo, 
em cada ruga leio o meu destino. 

 António Franco Alexandre
1967: 22 anos depois de terminar a II Guerra Mundial. É esta a data à qual recua este filme, que coloca em discurso directo os autores de um sistema legal que legitima e regulamenta a ocupação de territórios palestinianos pelo Estado de Israel.
Coimbra, 3 de Dezembro de 1980

A conversa foi longa e enrodilhada. Um dizia, o outro respondia, e o rio de palavras ia correndo sem chegar a nenhuma foz. Até que de repente surgiu na escuridão do diálogo a luz de uma síntese que satisfez os dois:
-O homem, quando toca uma mulher, sente-se pecador; a mulher, quando é tocada, sente-se salva.

Miguel Torga, Diário XIII, 1983




Ele tem pertinências para árvore
O pé vai-se alargando, via de calangos, até ser
raizame. Esse ente fala com águas.
É rengo de voz e pernas.
Se esconde atrás das palavras como um perro. 
Formigas se mantimentam nas nódoas do seu casaco.
De um turvo cheiro órfico os caracóis o escurecem.
Um Livro o ensinou a não saber nada - agora já sabe.
Estrela encosta quase em sua boca descalça. 

Manoel de Barros, in O Guardador de Águas, Editora Record, 2009
LITTLE GIDDING


III
Há três condições que muitas vezes se confundem
Mas que diferem completamente e vicejam na mesma sebe:
Apego a si próprio e a coisas e a pessoas, desapego
De si próprio e das coisas e das pessoas; e, crescendo entre 
ambos, a indiferença
Que se assemelha às outras como a morte se assemelha à vida,
Estando entre duas vidas, a desflorir , entre 
A urtiga viva e a urtiga morta. Este é o uso da memória:
Para a libertação- não menos amor
mas alargamento do amor para além do desejo, e assim libertação 
Do futuro tal como do passado.  Assim o amor por um país
Começa como apego ao nosso campo de acção
E acaba por achar essa acção pouco importante
Embora nunca indiferente. A história pode ser servitude,
A história pode ser liberdade. Vê, agora desaparecem,
Os rostos e os sítios, com o ser que os amou como pôde, 
Para ficarem renovados, transfigurados, num outro padrão. 
O pecado é-nos Próprio, mas 
Tudo há-de ficar bem, e
Toda a espécie de coisa há-de ficar bem. 
Se penso, de novo, neste lugar, 
E em pessoas, não inteiramente recomendáveis,
Sem linhagens nem gentileza claras,
Mas algumas de um génio peculiar,
Todas com um toque de um génio comum,
Unidas na contenda que as dividia;
Se penso num rei ao anoitecer,
Em três homens, e mais, no cadafalso
E alguns que morreram esquecidos
Em outros lugares, aqui e lá fora,
E num que morreu cego e calmo, 
Porque haveríamos de comemorar
Estes mortos mais do que os moribundos?
Não se trata de tocar o sino a anunciar o passado
Não se trata de um encantamento 
Para conjurar o espectro de uma Rosa.
Não podemos  restabelecer velhas políticas
Ou seguir um antigo tambor. 
Estes homens a quem eles se opuseram
Aceitam a constituição do silêncio
E estão agrupados num único rebanho.
Seja o que for que herdemos dos que prosperam
Já recebemos dos derrotados
O que tinham para nos deixar - um símbolo:
Um símbolo aperfeiçoado na morte.
E tudo há-de ficar bem e
Toda a espécie de coisa há-de ficar bem
Pela purificação do motivo
No solo da nossa súplica.

T.S. Eliot, in Quatro Quartetos, Relógio d'Água, 2004, or. 1944 (tradução de Gualter Cunha)


46.
JUNTO AO FOGO


Decidiu abandonar as mulheres e, por longo tempo, de facto, viveu só. Passeava, olhava as árvores e frequentava o café sem voltar o rosto para qualquer mulher bela.
Mas um dia, uma jovem colocou-se ao seu lado e disse-lhe que o amava. Durante muitos dias o homem recusou-a, até que a mulher deixou de vir ao café, desaparecendo sabe-se lá para onde.
Só agora, aquele tal, foi sacudido por tão grande amor que percorreu, a pé, toda a cidade, até que parou a conversar com uma daquelas mulheres que vive junto às fogueiras, na periferia E nem reparou que era a mesma rapariga que o amava.

Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Assírio & Alvim, 2002 (tradução de Mário Rui de Oliveira)





A CIÊNCIA DO AMOR
O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam
Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam

José Tolentino Mendonça, in Estação Central, Assírio & Alvim, 2012



POEMAS DE AMOR, 13 

Primeiro está a solidão.
Nas entranhas e no centro da alma:
que é a essência, o dado básico, a única certeza:
que só a tua respiração te acompanha,
que sempre bailarás com a tua sombra,
que essa treva és tu.
Teu coração, esse fruto perplexo, não tem que azedar-se com a tua sina
                                                                                                               solitária;
Deixa-o esperar sem esperança 
de que o amor é uma dádiva que um dia chegará só por si.
Mas primeiro está a solidão, 
e tu estás só,
estás só com o teu pecado original - contigo próprio- .
Acaso uma noite, às nove, 
aparece o amor e tudo estoira, e algo se ilumina dentro de ti,
e tornas-te outro, menos amargo, mais feliz:
mas não te esqueças, especialmente então, 
quando o amor chega e te calcina,
que primeiro e sempre está a tua solidão,
e logo nada
e depois, se houver de chegar, está o amor. 

Darío Jamarillo Agudelo, in Um País que Sonha. Cem anos de poesia colombiana (1865-1965), Assírio & Alvim, 2012 (selecção de Lauren Mendinueta e tradução de Nuno Júdice)



Aklilu Temesgen Bizuayehu

Hasse, um rapaz alto, moreno, que era cinco anos mais velho do que eu, tinha o hábito de me atirar ao chão em todos os intervalos das aulas, durante o primeiro ano lectivo. No início, eu resistia ferozmente, mas não servia de nada, porque ele conseguia sempre deitar-me ao chão e ganhar. Por fim, descobri o método de o desiludir: descontração total. Quando ele se aproximava, eu fazia de conta que o Meu Eu tinha voado para outro sítio e deixado ali um cadáver, um trapo sem vida que ele podia deitar ao chão à vontade. Acabou por se fartar.
Penso no que este método, de uma pessoa se transformar num trapo sem vida, terá significado para mim ao longo da vida. A arte de ser pisado conservando a dignidade. Não terei recorrido a este método com demasiada frequência? Umas vezes resulta, outras não.

Thomas Transtromer, As Minhas Lembranças Observam-me, Sextante Editora, 2012 (tradução do sueco de Ana Diniz)









     Fotografia de José Manuel Ribeiro/Reuteurs, encontrada aqui
     Lisboa, 15 de Setembro de 2012
"Para mim, ficará sempre como um mistério, que talvez um dia a história explique, que tantos países devastados por uma crise económica desencadeada pelas teorias liberais da administração Bush tenham depois recorrido aos autores morais do crime para apagar o incêndio que eles próprios tinham ateado. Mas tenho como indiscutível que só chegámos aqui porque a esquerda, a esquerda europeia, não foi capaz de se livrar de dogmas paralisadores e entender como o mundo estava a mudar e a própria noção de justiça social tinha de mudar com ele. Portugal é um bom exemplo de como toda a esquerda, desde as múmias leninistas aos socialistas deslumbrados com o dinheiro fácil, passando pelo BA (esquerda Bairro Alto) passaram décadas a venerar como boi sagrado uma legislação e doutrina laboral que tornava impossível despedir o pior dos trabalhadores, assim protegendo os mediocres, os calões e os batoteiros das falsas baixas, nivelados com os que queriam trabalhar e nunca conseguiram sair da cepa torta. Os baixos salários, uma das características endémicas da nossa economia, não foram apenas impostos por patrões sem escrúpulos, mas também por um sindicalismo que sempre quis nivelar todos por igual, acabando a nivelar todos por baixo. Sem um estremecimento de apreensão, a nossa esquerda sentou-se confortavelmente em cima dos "direitos adquiridos", recusando-se a entender que não podia ser adquirido o que não era financeiramente sustentável- nas reformas, na saude publica, na imensa panóplia de actividades subsidiadas. A cegueira e a má fe da esquerda prepararam o caminho para a ruína dos países e para a vingança histórica da direita económica a que agora assistimos."

Miguel Sousa Tavares, "Tem de Haver Alternativa", Expresso, 8 de Setembro 2012


DEFENSA DE LA ALEGRIA

                                     a trini




Defender la alegria como una trinchera
defenderla del escandalo y la rutina
de la miseria y los miserables
de las ausencias transitorias
y las definitivas

defender la alegria como un principio
defenderla del pasmo y las pesadillas
de los neutrales y de los neutrones
de las dulces infamias
y los graves diagnosticos

defender la alegria como unna bandera
defenderla del rayo y la melancolia
de los ingenuos y de los canallas
de la retorica y los paros cardíacos
de las endemias y las academias

defender la alegria como un destino
defenderla del fuego y de los bomberos
de los suicidas y los homicidas
de las vacaciones y del agobio
de la obligacion de estar alegres

defender la alegria como una certeza
defenderla del óxido y la roña
de la famosa pátina del tiempo
del relente y del oportunismo
de los proxenetas de la risa

defender la alegria como un derecho
defenderla de dios y del invierno
de las mayúsculas y de la muerte
de los apellidos y las lastimas
del azar

              y también de la alegria

Mario Benedetti, in Cotidianas,Visor Libros, 2001
*mais sério do que parece
FUTURO IMPERFECTO
                                     
                                     El porvenir es un niño desnudo
                                     Raúl Gonzalez Túñon

De poco sirve arroparlo
y menos
colgarle collares y prognósticos
brindarle metrallas de manga larga
calzarle prejuicios de siete leguas

de poquíssimo sirve ponerle
profaces o antifaces
o un delantal de músicamenos aún la consabida
bufanda del viento

el futuro es un niño desnudo
y en consequencia ufano imprevisible
cuando menos lo esperas
te coloca una rosa en la oreja
o te orina inocente en la calva

Maria Benedetti, in Cotidianas, Visor Libros, 2001



Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar.

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão




Daniel Faria, Explicação das árvores e outros animais. (Do Inexplicável), in Poesia, Assírio & Alvim, 2012





Nicolas de Stael 
(1914-1955)


"Deu-nos o inesperado, que não deve nada à esperança"
René Char

26.
Meu pai sempre dizia que o sofrimento melhora o homem, desenvolvendo o seu espírito e aprimorando a sua sensibilidade; ele dava a entender que quanto maior fosse a dor tanto ainda o sofrimento cumpria sua função mais nobre; ele parecia acreditar que a resistência de um homem era inesgotável. Do meu lado, aprendi bem cedo que é difícil determinar onde acaba a nossa resistência, e também muito cedo aprendi a ver nela o traço mais forte do homem; mas eu achava que se da corda de um alaúde - esticada até ao limite- se podia tirar uma nota afinadíssma (supondo-se que não fosse mais que um arranhado melancólico e estridente), ninguém contudo conseguiria extrair nota alguma se a mesma fosse destendida até o rompimento. Era isso pelo menos que eu pensava, até à noite do meu retorno, sem jamais ter suspeitado antes que se pudesse, de uma corda partida, arrancar ainda uma nota diferente (o que só vinha confirmar a possível crença de meu pai de que um homem, mesmo quebrado, não perdeu ainda a sua resistência, embora nada provasse que continuava ganhando em sensibilidade).


Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, Relógio d'Agua, 1999 (or.1975)







Henry Cartier-Bresson 

O POEMA FALANTE

Ser poema é alguma coisa
que habitualmente se é sem dar por isso.

Poema puro, de mais nada,
aqui estou eu a dizer o que sou-
tanto bastará pra me negarem.

Jorge de Sena, in Post Scritum II, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1935

El único argumento es ya el de la mirada.

J. M. Caballero Bonald


Brusco e mal feito vejo-me acordar,
os olhos vivos de tempestade – dado que
durmo conspirando comigo –, e a fantasia
segue mas já peço emprestada à
realidade a sua substância. No meu,
a dor de vários corpos, um gesto
de estupor frente ao espelho e a delicada
insensatez das primeiras noções
como pássaros de olhos vazios contra
um céu sem altura.

Um tempo suave e desanimado recorta
os domínios de ninguém, pátios breves
como suspiros, como ecos presos
nestas tardes escondidas.
Depois do grandiloquente pôr do sol,
as cercas de luz vieram abaixo e o que
do dia restou não anima mais que uns
esboços desajeitados. O vento
volta aos seus círculos
, extenuadas,
as flores desistem de simular fragrâncias
e tossem com o cair da noite sobre
esta terra de passos contados.

Estar aqui sem que ninguém o saiba
tem a sua mecânica. O meu silêncio
não é nada. Braços cruzados e a mão
com que coço o mundo fica aí,
fria e indiferente. Dentro da garrafa
onde me quebro e perco pé noutra
destas noites ansiosas, sirvo reflexos
que levantam o mesmo copo e se saúdam.
Embriagado de imagens, dominado por
altíssimos impulsos (Though this be madness
there is method in it
), gelo de cada vez
que me apanho a falar sozinho.

Nos dias mais fracos, dando conversa
a fantasmas (sempre lúcidos), vem-me esta
vergonha de conservar a vida, de ter
oferecido a sombras os melhores anos.
Sabendo que a verdade de um homem
não lhe serve de nada e é o seu erro
que lhe exige todas as forças,
cada um ergue à sua volta
uma pátria de circunstância. Tudo está
aqui. Temos as nossas causas nobres e
lances amorosos
, trocamos
beijos e instruções, sexo e esquecimento.
Mas persiste a sensação de que não
passamos de cadáveres segurando rosas.
Corpos esquivos entrelaçados por
delírios sombrios. Neutras, dóceis figuras
que a loucura aperfeiçoa e a beleza imita
– os detalhes exactos que nos
prendem ao cenário desta noite total.
Luminosos espaços de outro tempo
arrasados pela música
, esta sombra larga
e infecta que resume as nossas vidas de
náufragos insaciáveis, reis solitários
,
anjos vazios eternamente amotinados.

Quando nos sentamos descalços e sem
camisa, o silêncio chega-se e cheira-nos
as palmas voltadas sobre a mesa
nocturna, pedindo um verso que perdure
como um baloiço entre ruínas.


Diogo Vaz Pinto