El único argumento es ya el de la mirada.

J. M. Caballero Bonald


Brusco e mal feito vejo-me acordar,
os olhos vivos de tempestade – dado que
durmo conspirando comigo –, e a fantasia
segue mas já peço emprestada à
realidade a sua substância. No meu,
a dor de vários corpos, um gesto
de estupor frente ao espelho e a delicada
insensatez das primeiras noções
como pássaros de olhos vazios contra
um céu sem altura.

Um tempo suave e desanimado recorta
os domínios de ninguém, pátios breves
como suspiros, como ecos presos
nestas tardes escondidas.
Depois do grandiloquente pôr do sol,
as cercas de luz vieram abaixo e o que
do dia restou não anima mais que uns
esboços desajeitados. O vento
volta aos seus círculos
, extenuadas,
as flores desistem de simular fragrâncias
e tossem com o cair da noite sobre
esta terra de passos contados.

Estar aqui sem que ninguém o saiba
tem a sua mecânica. O meu silêncio
não é nada. Braços cruzados e a mão
com que coço o mundo fica aí,
fria e indiferente. Dentro da garrafa
onde me quebro e perco pé noutra
destas noites ansiosas, sirvo reflexos
que levantam o mesmo copo e se saúdam.
Embriagado de imagens, dominado por
altíssimos impulsos (Though this be madness
there is method in it
), gelo de cada vez
que me apanho a falar sozinho.

Nos dias mais fracos, dando conversa
a fantasmas (sempre lúcidos), vem-me esta
vergonha de conservar a vida, de ter
oferecido a sombras os melhores anos.
Sabendo que a verdade de um homem
não lhe serve de nada e é o seu erro
que lhe exige todas as forças,
cada um ergue à sua volta
uma pátria de circunstância. Tudo está
aqui. Temos as nossas causas nobres e
lances amorosos
, trocamos
beijos e instruções, sexo e esquecimento.
Mas persiste a sensação de que não
passamos de cadáveres segurando rosas.
Corpos esquivos entrelaçados por
delírios sombrios. Neutras, dóceis figuras
que a loucura aperfeiçoa e a beleza imita
– os detalhes exactos que nos
prendem ao cenário desta noite total.
Luminosos espaços de outro tempo
arrasados pela música
, esta sombra larga
e infecta que resume as nossas vidas de
náufragos insaciáveis, reis solitários
,
anjos vazios eternamente amotinados.

Quando nos sentamos descalços e sem
camisa, o silêncio chega-se e cheira-nos
as palmas voltadas sobre a mesa
nocturna, pedindo um verso que perdure
como um baloiço entre ruínas.


Diogo Vaz Pinto

1 comentário:

  1. perdi o corpo, durante a leitura. digo-te que "é lindo", nesta imaterialidade momentânea. um sopro.

    beijo,
    Josephine

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