É impossível saber quando cairá o crespúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se  dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem. 


Stig Dagerman, A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer (versão de Paula Castro e José Daniel Ribeiro), Fenda, 2004 (or. 1955)


RECEITA DE ANO NOVO
 
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz
,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,

tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

Quando a harmonia chega


Escrevo na madrugada as últimas palavras deste 
livro: e tenho o coração tranquilo, sei que a alegria 
se reconstrói e continua.
       Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, 
gente que desperta no rumor das casas, forças sur-
gindo da terra inesgotável, crianças que passam 
ao ar livre gargalhando. Como um rio lento e irrevogá-
vel,  a humanidade está na rua.
E a harmonia, que se desprende dos seus olhos 
densos ao encontro da luz, parece de repente uma 
ave de fogo.



Carlos de Oliveira, in Terra da Harmonia, 1950
Já estive em lugares áridos, sem possibilidade de mapa. Entrei e saí da mesma maneira, segura de um quotidiano qualquer que supostamente me conta. Narrativa automática, rotatividade maquinal de uma existência tranquila, sem doenças, com sorrisos. Está tudo bem enquanto o corpo for este competente falsário.
É frequente não sentir ou sentir demais, o que é, no fundo, a mesma coisa. Os lugares áridos, no entanto, são toponímia de transparência, onde o desejo de tocar os ossos é mais nítido e de repente a pele é um entrave gigante entre um corpo e a sua realidade.
Um campo de morte transformado em museu, uma mesa noctívaga rodeada de gente, uma cama onde está alguém que começa mesmo ali ao lado. Há uma proximidade impossível, um encontro permanentemente adiado na evidência desse contacto. Os mapas poderiam ser úteis, se soubesse de onde partia. 
É tudo polido e correcto, como uma família do século XIX que se compõe geometricamente para o daguerreótipo. Imaginem-se as linhas certas de gente tão íntima quanto estranha, num tempo em que o amor era um efeito secundário dos costumes. Ousado absurdo, o da invenção da fotografia, nesse pequeno grande equívoco do rigor técnico.
Como nessas imagens de perfeição que envelhecem e se mancham, desafio vencido pelos anos, assim eu, no meu tempo informatizado, certa, com razão, ensaio lógico que tantas vezes quero destruir. É saber que temos ossos, saber com os próprios ossos, a única possibilidade de orientação.

XXXXXXXX

A VIAGEM

Chego a este lugar enorme. Enorme em área, digamos suficiente para plantar a sobrevivência vegetal de mil gerações. Enorme em peso: meço pela multidão à minha volta os quilos de memória, ao ponto de acharmos que chega para todos. Enorme em vazio: um calendário evidente goza com as nossas boas intenções.
Sabemos que:
Aqui fizeram-se filmes.
Realizaram-se experiências científicas.
Chegaram comboios de todo o mundo.
Esperavam animais. Construíram estábulos e em cada um cabiam 800.
O arame farpado está intacto. É histórico e já não magoa.
Sem que ficassem com qualquer marca, em um ano, 1 milhão trezentas e cinquenta e sete pessoas visitaram este espaço.
Mais ou menos o número de mortos, no mesmo sítio, num período de 3 anos, a uma velocidade cronometrada de poucas semanas.
Onde agora há máquinas de chocolates, dantes havia: um chá pela manhã, um caldo ao almoço, um quarto de pão ao jantar.
Para trás e para nós, restaram cabelos, dentes, tachos e sapatos.
Estico os braços no meio de tudo e não toco nada. Quero um corpo universal. Em vez disso, alcanço vagamente um americano que pergunta: porque não fugiam? Um sobrevivente diria: se estivesse morto, não teria podido ouvir essa pergunta. Mas o futuro onde estou, interessado, cordial, memorialista, ignora isto: sessenta anos depois, sou eu a geração falecida. Não consigo ouvir as perguntas e mesmo as que formulo são ecos confusos entre noticiários.
Comovo-me com as imagens, não me conformo com as distâncias, apanho aviões. Sou rápida como o século, mas é na lentidão que me perco, à procura. À procura.

XXXXXXXX

A NOITE

Os sorrisos. Uma alegria estranha, tão estranha. Copos. E escuridão. Material vítreo, onde quase tudo é reflexo. Raramente tive passaporte para estas mesas onde a juventude é eterna, da cintura para baixo. Aqui ninguém se confessa, é pecado. Leva-se uma enorme bagagem, o peso do transitório. Somos forasteiros e fugitivos. Gente sem terra. Sem pátria própria. Sem bandeira e tantas vezes sem língua. Gesticulamos muito, há em nós uma vontade irreprimível de nos fazermos entender, de nos entendermos. Traficamos tudo: passados (somos tragédias), presentes (malabaristas da suspensão), futuros (possibilidades absurdamente infinitas).  
Plural não é colectivo. Há qualquer coisa de tão democrático em nós! Herdeiros de uma plenitude inútil, onde podemos mas nem sempre queremos. Podemos foder, podemos dizer foder. Podemos amar, podemos dizer amor. Não temos memória de nada exíguo que nos tolha o corpo, celas pequenas ou dor arbitrária, nomes falsos ou moradas incertas. A guerra fria e todas as revoluções ingénuas criaram-nos com tanto carinho. Uma overdose de carinho. Bombas de espaço, fronteiras abaixo, massacres acima.
 A amplidão é tal que não há tempo para queixumes. Tudo pode e deve ser velocidade. A nossa vertigem multiplicada pelo chão que pisamos, conta incerta que nos deve expandir. Há que ser invertebrado, partir membros, forçar articulações. Mesmo assim, não chegará para fazer o nosso lugar. Uns tentam mais, sorriem ao seu corpo estendido em sucesso. Aberrações de feira, felizes e com o seu particularíssimo público. Outros não tentam nada, desistem, entristecem. Vencidos de si, nem sequer podem culpar ninguém.
A terminologia bélica adequa-se. Mesmo sem dicionários, somos tantas vezes a entrada da guerra. Saímos à noite, como os animais mais ferozes, e sorrimo-nos desgraçadamente, numa confrangedora incapacidade de sermos o que parecemos. Maltratamo-nos. Reinventamos a tortura. Carrascos sem convicção. Vítimas agressoras. Celebramos o nosso paradoxo. Erguemos copos como se não tivéssemos mãos. Queremos abrigos mas não nos deixamos acolher. Voltamos sozinhos para casas que não sabemos de quem são. Proprietários de tudo, emprestamo-nos à noite como se fossemos baratos. Mas tudo sai caro. Demasiado caro. Ou eu nasci de manhã e nunca aprendi a negociar com a escuridão.

XXXXXXXX 

O AMOR

Perdi o primeiro momento em que te vi, como um objecto que largamos porque não vamos precisar. Estaríamos entre livros. Pó. Sabedoria encadernada. Proximidade inocente. A opção de abrir ou fechar.
Sonhei que me escrevias uma carta:

Queria dizer-te que tudo vai mudar. Os olhos que julgas que tens serão outros e nada do que te digam sobre eles fará nenhum sentido, porque serão novos, recém-nascidos. O teu corpo será qualquer coisa que continua no mundo mas de outra forma, como se o chão tivesse perdido a utilidade. O tempo também ganhará contornos diferentes e, mais do que nunca, não o vais conseguir apanhar. A diferença é que estarás feliz com isso. Nós vamos entrar pelos dias um do outro  e instalarmo-nos neles como nunca tivesse existido outro lugar. Por isso, prepara tudo para a nossa chegada: vai às consultas médicas, ao cabeleireiro, visita todos os que precisam de ti, alimenta o gato e conta-lhe os segredos urgentes, marca férias no mar com cama de casal, avisa o mundo que agora serás a mesma, mas melhor. Encontramo-nos lá, então.

Chegámos ao mesmo lugar, como combinado.
Lá, perguntaste-me o que fazia quando acordava de noite, antes de ti.
Deixei de adormecer para te responder, diariamente.
Festejei as tuas mãos longas por poder amar-te perto de todos.
O corpo : uma aflição e depois uma escada.
Disseste-me que deus estava entre nós, entre nós os dois, numa varanda.
Éramos fogo pela água. Tudo transbordava. Os poros, os olhos, os dias. Parecia um milagre.
Deus deve ser afinal, como sempre suspeitei, apenas uma ficção.
Fomos breves. Somos silêncio. Serei ferida.
E guardei a tua carta, dentro dos ossos.

In Criatura 6, 2011 
Lisboa, 2011
De mim para mim, digo que deveria ser inscrito em todas as constituições do mundo o direito imprescritível  de cada um a regressar quando bem entendesse aos lugares maiores do seu passado. Confiar a cada qual um molho de chaves dando acesso a todos os apartamentos, vivendas e pequenos jardins nos quais se desenrolou a sua infância, e permitindo-lhe ficar horas inteiras nesses palácios de Inverno da memória. Nunca os novos proprietários poderiam levantar obstáculos a estes peregrinos do tempo. Acredito intensamente nisto, e, se um dia tivesse de retomar a minha intervenção política, digo para comigo que tal seria o ponto único do meu programa, a minha única promessa de campanha.

Eric Faye, Nagasáqui, Gradiva, 2011 (tradução de Miguel Serras Pereira)
"Luck is an attitude"

Mouriscas, 2011

Há um conto de Tolstoi que diz que o homem só precisa de sete palmos de terra para se cobrir. Precisa dessa terra, que é a sua inscrição. O acaso do nascimento, que é pura contingência, é qualquer coisa que nos adjectiva. Uma pessoa que nasce num país, que tem uma língua secular, que tem uma história singular, tem uma segunda ou primeira natureza, na qual se define ou ela nos define a nós. E mesmo quando se tem, como eu, uma grande permanência num país que não é o nosso, há um momento ou outro em que a palavra que não se percebeu permite saber que não estamos em nossa casa. O que define realmente as pessoas é o não-dito. Tudo o que é explícito pertence à ordem do que é intercomunicável.

Eduardo Lourenço, em entrevista à Actual  Expresso, 23 Dezembro 2011
(...) perguntou-me se tinha medo do escuro e eu senti uma coisa cá dentro, um consolo, um júbilo, um alívio, a certeza de regressar a casa a seguir a uma viagem sem fim porque quando uma mulher pergunta a um homem se tem medo do escuro é sinal que quer ficar com ele para sempre, é sinal que quer ficar com ele muito tempo.

António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores, Publicações D. Quixote, 1996
Too big to fail

Como pode um investimento tão fiável
garantir este rendimento crescente, numa
diária distribuição de beijos e outras mais-
-valias, ainda por cima livres de impostos?


Embora confiasse na tua competência
para criar valor, confesso que não esperava
tanto quando decidi aplicar nos teus títulos
sensíveis os meus parcos activos emocionais.



O mais estranho, no mundo actual, é ser este
um negócio sem perdedores, aparentemente
imune ao nervosismo das tuas acções
ou às flutuações do meu comércio libidinal.



O meu único receio é que despertemos
a invejo dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,
e que Mercado, o monstruoso titã, decida
baixar para lixo o rating da nossa relação,


deixando-nos sem crédito na praça romanesca
e em default o coração. Mas não sejamos
pessimistas. Aliás, ambos sabemos que Cupido
nos ampara com sua mão invisível
. E mesmo


que entrássemos ambos em depressão, tenho
a certeza de que o Estado português nos daria
todo o apoio, concordando que um amor como
este é simplesmente demasiado grande para falir.

José Miguel Silva

Encontrado aqui
Hipérbole del amoroso

Te amo tanto que duermo con los ojos abiertos.
Te amo tanto que hablo con los árboles.
Te amo tanto que como ruiseñores.
Te amo tanto que lloro joyas de oro.
Te amo tanto que mi alma tiene trenzas.
Te amo tanto que me olvido del mar.
Te amo tanto que las arañas me sonríen.
Te amo tanto que soy una jirafa.
Te amo tanto que a Dios telefoneo.
Te amo tanto que acabo de nacer.



Carlos Edmundo de Ory, aqui

Encontrado aqui


We live together in a photograph of time
I look into your eyes and the sea opens up to me
I tell you I love you and I always will
And I know you can't tell me


I'm left to pick up
The hints, the little symbols of your devotion


Anthony and The Johnsons
NOSTHALGIA

Ouvia-te falar e sentia
as chamas retomarem
as paredes do teu coração
de igreja abandonada.
O céu, nessa tarde,
era de um leque de lantejoulas
ao rés do teu sorriso
e dos meus olhos encadeados.
Doía-me esse excesso de luz
que te fazia toda sombra,
o crepitar morto da pele
antes do incêndio consumado.

Sempre que dizias o meu nome,
riscavas outro fósforo -
ele avançava dentro de ti,
nas mãos uma vela prestes a cair.
Amo demasiado o fogo
para a suster. Prefiro
redesenhar as nossas cicatrizes,
ser depois a memória da pedra
fria em  pleno Verão.

Inês Dias, in Em Caso de Tempestade Este Jardim Será Encerrado, Tea for One, 2011
CALGARY 


Don't you cherish me to sleep
Never keep your eyelids clipped
Hold me for the pops and clicks
I was only for the father's crib

Hair, old, long along
Your neck onto your shoulder blades
Always keep that message taped
Cross your breasts you won't erase
I was only for your very space

Hip, under nothing
Propped up by your other one, face 'way from the sun
Just have to keep a dialogue
Teach our bodies: haunt the cause
I was only trying to spell a loss

Joy, it's all founded
Pincher with the skin inside
You pinned me with your black sphere eyes
You know that all the rope's untied
I was only for to die beside

So it
ʼs storming on the lake
Little waves our bodies break

There's a fire going out,
But there's really nothing to
the south



Bon Iver
Diane Arbus, Auto-retrato com  a filha, 1945
Diane Arbus, sem título, 1970/71


Most people go through life dreading they'll have a traumatic experience. Freaks were born with their trauma. They've already passed their test in life. They're aristocrats.
 
Diane Arbus (1923-1971)
Terry Border



Chema Madoz
Encontrado aqui
Tatoo

(...)
Na verdade, o manifesto de Joseph Beuys que na década de setenta reclamava a arte para todos os cidadãos, os rituais corporais de Hermann Nitcher que esteticizavam as cicatrizes e o corpo tingido ou as acções-manifestos do grupo vienense onde protagonizava Arnuf Rainer que reclamavam a deslocação de uma arte nova para o corpo do artista têm agora, cinquenta anos depois, a sua materialização nos corpos actuais.

Esta é a body art deste século e os cidadãos que a fazem sem o saberem estão a realizar, na prática, um dos maiores desejos do filósofo Michel Foucault: o da assunção por cada sujeito de uma política do corpo. Hoje já não se proclamará de forma submissa: este é o meu corpo, mas é possível afirmar no acto do tatoo: Este corpo é meu!

António Pinto Ribeiro, Público, 24 de Junho de 2011
versão completa aqui
Jamais vos esquecerei mulheres raparigas - efémeras
entrevistas subitamente no meio da multidão na escadaria no mercado

no dédalo do metro
nas janelas dos automóveis
- com clarões de calor
- presságio de bom tempo
- como uma paisagem embelezada pelo seu reflexo no lago
- como uma aparição no espelho
nos esponsais daquilo que é
e daquilo que é apenas pressentido
- no baile
quando a orquestra deixa de tocar
e a aurora coloca nas janelas
círios por acender

jamais vos esquecerei - fonte pura de alegria - vivi também graças aos
vossos olhos de corça
graças às bocas que não eram minhas
às mãos castanho-amareladas que escolhiam como se estivessem acariciando
peixes de prata

pequena rapariga das Antilhas é de ti que me lembro melhor
não te vi senão uma só vez chez le marchand des journaux
olhei-te mudo retive a respiração - para não te assustar
e durante um instante pensei que - caminhando contigo
teríamos mudado o mundo

Jamais vos esquecerei -
o movimento aturdido das pálpebras
a indescritível inclinação da cabeça
o ninho da palma

na minha memória fiel repito
rostos imutáveis místicos sem nome

e a rosa

nos cabelos negros


Zbigniew Herbert
(tradução de Jorge Sousa Braga)



Encontrado aqui
E há, também, aqueles instantes  em que um homem à tua frente se destaca clara e calmamente sobre o fundo do seu esplendor.
São celebrações raras, que não se esquecem jamais. Amarás esse homem daí em diante. Quer dizer: aplicas as tuas mãos ternas a reproduzir os contornos da sua personalidade, como os reconheceste naquele momento.

Rainer Maria Rilke, in Notas sobre a Melodia das Coisas, Averno, 2011 (tradução de Sandra Filipe)
PARA RECITAR ANTES DE ADORMECER

Eu queria cantar para dentro de alguém,
sentar-me junto a alguém e estar aí.
Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres.
Queria ser o único na casa
a saber: a noite estava fria.
E queria escutar dentro e fora
de ti, do mundo, da floresta.
Os relógios chamam-se anunciando as horas
e vê-se o fundo do tempo.
E em baixo ainda passa um estranho
e acirra um cão desconhecido.
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,
muito abertos, pousaram em ti;
e prendem-te docemente e libertam-te
quando algo se move na escuridão.



INICIAL

Entrega sempre a tua beleza
sem cálculo, sem palavras.
Calas-te. E ela diz por ti: eu sou.
E com mil sentidos chega,
chega finalmente a cada um.

Rainer Maria Rilke, in O Livro das Imagens, Relógio d'Água, 2005 (or. 1902 e 1906)
(tradução de Maria João Costa Pereira)
ANTES DA PAIXÃO

Oh, Tu assim o quiseste, não devias
ter nascido do corpo de uma mulher:
é preciso extrair Salvadores de montanhas ínvias,
onde se separa o que é duro de outra dureza qualquer .

Não  Te dá pena assim devastar
o Teu querido vale? Vê a minha fraqueza;
apenas tenho ribeiros de leite e lágrimas para ofertar,
e Tu viveste sempre nessa sua largueza.

Com tal excesso me foste prometido
por que não saíste de mim em estado selvagem?
Se apenas de tigres precisas para ser dilacerado,
porque fiz na casa das mulheres a aprendizagem

De um pequeno vestido puro e macio Te tecer
sem que nele te pudesse magoar a aspereza
da menor costura; assim foi todo o meu viver,
e agora de súbito transtornas a Natureza.

Rainer Maria Rilke, A Vida de Maria, Portugália Editores, 2008, or. 1913 (tradução de Maria Teresa Dias Furtado)




Não quero lhe falar,
Meu grande amor,
Das coisas que aprendi
Nos discos

Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo


Viver é melhor que sonhar 

Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina


Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens


Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço,

O seu lábio e a sua voz
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva
Do meu coração

Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória

Essa lembrança
É o quadro que dói mais


Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais


Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
 



Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando vil metal


Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo,
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

Elis Regina