"As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrém. Os SS maus e estúpidos, os Kapos, os políticos, os criminosos, os proeminentes grandes e pequenos, até aos Häflinge* indiferenciados e escravos, todos os degraus da insana hirarquia criada pelos alemães, estão paradoxalmente unidos numa única desolação interior".

Primo Levi, Se Isto é um Homem, Editorial Teorema, 2001 (original 1958)
*prisioneiros







Considerada hoje obra fundamental sobre o Holocausto, o primeiro livro de Primo Levi, escrito em 1945, foi recusado por várias editoras, e só viu a luz do dia em 1958, pelas mãos de um pequeno editor de Turim.

Químico de formação, Primo Levi foi libertado de Auschwitz aos 24 anos. Das 650 pessoas que entraram com ele no campo da morte, 2 anos antes, foi um dos poucos sobreviventes do seu grupo, não mais que 20. E escreveu, dedicando grande parte da sua vida ao testemunho sobre o horror nazi. "As coisas que tinha vivido, sofrido, queimavam-me por dentro", disse. "Sentia-me mais próximo dos mortos do que dos vivos, sentia-me culpado de ser homem, porque os homens tinham construído Auschwitz e Auschwitz tinha engolido milhões de seres humanos, muitos amigos pessoais e uma mulher que estava próxima do meu coração. Parecia-me que me purificaria contando, sentia-me semelhante ao velho marinheiro de Coleridege..."

Ao contrário de Jorge Semprum, outro escritor ex-prisioneiro do III Reich, que optou por silenciar a escrita sobre o tema durante quase duas décadas para sobreviver (La Escritura o la Vida, Tusquets Editores, 1995), Primo Levi sobreviveu pela escrita. Pelo menos até 11 de Abril de 1987, quando foi encontrado morto na caixa do elevador do prédio onde morava. Elie Wiesel, também detido num campo de concentração, e distinguido nos anos 80 com o Nobel da Paz, declarou que "Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois".

O Holocausto é, provavelmente, a mais divulgada tragédia da História do século XX. As primeiras imagens foram mostradas no julgamento de Nuremberga, perante uma audiência perplexa e incontinentemente chorosa. Daí para a frente, não têm conta os documentários e filmes produzidos sobre o assunto.  Os campos de concentração nazis entraram em todas as casas ocidentais. Ninguém pode não saber. Mas surge a questão colocada por Walter Benjamin, pensador da Escola de Frankfurt que se recusou a emigrar para os Estados Unidos antes do agravamento da perseguição aos judeus e se suicidou à beira de uma fronteira na véspera de poder dar o salto. Benjamin defendeu, a propósito do advento da fotografia, que a reprodução das obras de arte aniquilava a sua originalidade, a sua aura, a sua autenticidade. (Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d'Água, 1992).  Parece ser consequência da reprodutibilidade o desgaste, seja da arte ou de qualquer outra coisa.

60 anos depois, chegar a Auschwitz, numa "carreira" cheia de turistas e atravessar o portão onde os nazis inscreveram a sádica máxima "O trabalho liberta" é uma experiência perturbadora, pela incapacidade de sentir verdadeiramente uma realidade que vimos tantas vezes reproduzida. O que se perde? A aura? (do horror) A originalidade? (da experiência) A autenticidade? (da homenagem?) Há, no entanto, paralelos irónicos: chegam pessoas aos magotes, falam diferentes línguas, e preocupam-se em comer (há hoje, no espaço, vários estabelecimentos para o efeito). Não imagino outra forma, se não aquela, organizada, massiva, impessoal, de mostrar ao mundo o museu do horror. Mas não deixa de ser estranho. E tantos horrores do século XX, igualmente graves, alguns mais duradouros, repetidos, hediondos, não têm sequer museu.

Ler Primo Levi resgata o passageiro do século XXI desta espécie de distanciamento incómodo. Relato breve, objectivo, humanista e indubitavelmente autêntico, em Se Isto é Um Homem,  Primo Levi não coloca apenas as questões filosóficas fundamentais, aquelas que eram inconvenientes de imprimir nos anos imediatamente a seguir ao final da Guerra (tão cheios de crimes dos vencedores).  Primo Levi conta. A aleatoriedade da sua sobrevivência. As regras do campo. O dia-a-dia dos prisioneiros. A sua desumanização. E depois de tantos filmes, eis o que surpreende: as botas eram de madeira, e os prisioneiros viviam permanentemente com os pés em ferida; todos os bens obrigatórios no campo, como a roupa, os atacadores, os sapatos e a marmita, eram cedidos pelos carrascos em quantidades mínimas e insuficientes para cumprir as normas, instigando um sistema de troca e comércio crudelíssimo entre os próprios prisioneiros; os oficiais alemães falavam sempre na sua língua e a maioria sofria o desespero de não entender as ordens cujo cumprimento ditava a sua sobrevivência; muitos homens morriam abraçados ao desconhecido com quem partilhavam a cama, por absoluta necessidade de calor humano.

Quando os nazis souberam que o exército russo se aproximava, destruiram parte dos quatro fornos crematórios, fugiram, e condenaram milhares de prisioneiros famélicos a uma longa marcha de quilómetros pelo Inverno polaco, esvaziando praticamente as três estruturas que compunham o complexo Auschwitz-Birkenau. Algumas centenas ficaram: os doentes, os moribundos, os que se conseguiram esconder - isto sabemos dos filmes. Primo Levi acrescenta o essencial para compreender o momento:  sozinhos, sem guardas, sem arame farpado, livres e ainda vivos, aqueles homens não se alegraram. Alguns não se mexeram. Continuaram todos a pensar que morreriam no dia seguinte.

Phillip Roth entrevistou Primo Levi em 1986. Visitou-o na fábrica onde trabalhava, como químico reformado mas ainda no activo. E escreveu:  "Não é provavelmente tão surpreendente quanto se possa pensar que os escritores se dividam, como o resto da humanidade, entre aqueles que ouvem e aqueles que não ouvem". Oiçamos Primo Levi, que sabia ouvir. Ele traz-nos tudo o que precisamos para evitar a desumanização da memória.

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