Aquilo
A escrita. Dito assim, parece sério. E na verdade é. Argumentos históricos: panfletos mudaram regimes, artigos de jornal derrubaram presidentes, cartas de amor construíram mundos inteiros. E arrasaram impérios. Argumentos literários: ao tempo não sobreverirá nenhum gráfico económico. É uma tecnologia inigualável, a escrita. É séria sim. Ou não. Viveremos privados dela, todos, sem excepção. Nada na nossa animalidade sobrevivente, na nossa natureza gregária, rotineira, reprodutiva se alterará por ela ou pela sua ausência. É uma espécie de mulher principal com quem ninguém precisa de casar. Uma amante inesquecível mas dispensável. Se nos acontecer, inesperadamente ou após dedicada caçada, melhor. Se não, continuaremos – essa fatalidade sobre a qual há pouco a dizer. Mas um texto, acabado, é tão nosso como os dedos ou os fluidos. Cuidamo-los ou odiamo-los, mesquinhamente, grandiosamente. Só no que nos pertence de facto somos capazes de escalas tão díspares. E depois, há o medo. E sobre esse, retiro todos os plurais. A palavra por inventar não existe, já se sabe, ou é apenas uma vulgaridade de estilo. Mas o que fazer àquele novo membro que ia nascer se tivesse escrito aquilo? Aquilo - um feto secreto que dispensou fecundação, amor ou brutalidade para existir e que só se revela se o dermos à luz. E a luz é incerta, e o momento é frágil, e os dias são tanta coisa além desse outro que queríamos ser. Sinto-me grávida de mim própria constantemente. Mas eu tenho medo d’ aquilo. Há vaidade, há uma indigna e ridícula vaidade, no terror de ficar mais feia. Pode-se escrever, pode não se escrever, disse um poeta. Devia saber do que falava.
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