Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Poderia ter escrito com o sangue
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio da ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo, o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti

(inédito)

Daniel Faria, in Poesia, Assírio & Alvim (edição de Vera Vouga)
PROFECIA

Abriu-se a porta e o tempo saiu vestido de branco -
- todas as noites uma estrela caminhará,
alguma há-de acertar com a rota já esquecida.

Mas os homens, se isto virem, julgarão que o mundo acaba.

Jorge de Sena, in Post-Scriptum II, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985





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It's four in the morning, the end of December 
I'm writing you now just to see if you're better 
New York is cold, but I like where I'm living 
There's music on Clinton Street all through the evening. 
I hear that you're building your little house deep in the desert 
You're living for nothing now, I hope you're keeping some kind of record. 

Yes, and Jane came by with a lock of your hair 
She said that you gave it to her 
That night that you planned to go clear 
Did you ever go clear? 

Ah, the last time we saw you you looked so much older 
Your famous blue raincoat was torn at the shoulder 
You'd been to the station to meet every train 
And you came home without Lili Marlene 

And you treated my woman to a flake of your life 
And when she came back she was nobody's wife. 

Well I see you there with the rose in your teeth 
One more thin gypsy thief 
Well I see Jane's awake -- 

She sends her regards. 

And what can I tell you my brother, my killer 
What can I possibly say? 
I guess that I miss you, I guess I forgive you 
I'm glad you stood in my way. 

If you ever come by here, for Jane or for me 
Your enemy is sleeping, and his woman is free. 

Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes 
I thought it was there for good so I never tried. 

And Jane came by with a lock of your hair 
She said that you gave it to her 
That night that you planned to go clear -- 

Sincerely, L. Cohen 
(...)
Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas 
o amor é outro poder, a carne
vive de sua absorta permanência. Esta vida 
de que falo 
não se escoa, não alimenta os superlativos 
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência 
dos movimentos
(...)

Herberto Helder, Elegia Múltipla, in Poesia Toda, Assírio & Alvim, 1981 








Santorini, 2007







Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não 
se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa de vista. 
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto 
é, iluminá-la ou por ela ser iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, 
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela 
 ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro 
Do que pássaros sem vôos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se 
declara e declama um poema: 
Para guardá-lo: 
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: 
Guarde o que quer que guarda um poema: 
Por isso o lance do poema: 
Por guardar-se o que se quer guardar. 

  António Cícero, in Guardar-Poemas Escolhidos, Edições Quasi, 2002
A MEU FAVOR


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.


Alexandre O'Neill, in Poesia Completas 1951-1983, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1982
Sou gémeo de mim e tudo
O que sou é
Distância.
Estou sentado sobre os meus joelhos
Separado.
Aquilo que une
É um rumor.
Não descanso. Sou urgência
De outro sítio. E pudesse velar-me
Longe dos homens como se neles
Adormecesse.

(inédito)

Daniel Faria, in Poesia, Assírio & Alvim, 2012 (edição de Vera Vouga)


hung up in the ivory, both were climbing for a finer cause 
love can hardly leave the room 
 with your heart
EXPLICAÇÃO DA NOITE

Sobre a água estarei solto de caminhos
Dos que vierem nenhum barco é para ti

Não deixes a candeia acesa
Dorme: basta-me essa luz

Daniel Faria, in Poesia, Assírio & Alvim, 2012 (edição de Vera Vouga)
A espessura do sol
Cabe na boca

O Verão
Está quase a terminar

Não
O diremos a ninguém.

(inédito)

Daniel Faria, in Poesia, Assírio & Alvim, 2012 (edição de Vera Vouga)
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
Ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
Eu sou uma energia para ela

E ilumino-a

Daniel Faria, in Poesia, Assírio & Alvim, 2012 (edição de Vera Vouga)
NUMA ESTAÇÃO DE MADRUGADA

Recorda-os,
antes que o alcóol os leve
ou a memória os maquilhe e confunda,
antes que sejam sonhos esquecidos,
as marcas de uma pele noutra pele apagadas.

Recorda-os,
além da bruma e da noite,
sob as luzes de néon fantasmagóricas,
diante das vias de metal silencioso,
sem comboios, sem despedidas nem destino.

Recorda-os,
porque não te esperavam,
e nada te pediam, nem tu a eles também,
porque tudo era inútil, absurdo e desoportuno,
derrotada ternura e sombra da tua vida.

Recorda-os,
e beija outra vez aqueles lábios,
a sua alagada respiração, a língua surpreendida,
a sua frágil matéria húmida,
aqueles lábios que a tua boca imagina.

Recorda-os

Juan Luis Panero, in Poemas, Relógio d'Água, 2003 (tradução de Joaquim Manuel Magalhães)

VIA DEL GOVERNO VECCHIO



Se me trouxeres uma outra luz te explicarei
como se torna um amor imoderado
tão parecido ao anjo que nem nos é dado vislumbrar
a verdadeira passividade não é a do esquecimento
mas a mortal velocidade do desejo
que ninguém suporia a hora alguma
há um segredo comum àqueles desconhecidos
que esbarram um no outro por puro acaso
um olhar branco, um rosto que se volta
e depois no mundo nunca mais se encontram
Eu por mim nunca sei
se estou irremediavelmente longe ou demasiado perto de Deus
às vezes pergunto-me quantas vezes o corvo deverá
bater as suas asas negras
entre o meu corpo e o seu

José Tolentino Mendonça, in A Estrada Branca, Assírio & Alvim, 2005