Delhi, 2007
Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos. Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio, linhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atravessas e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da devolução.

Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar tudo numa árvore. Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a medida exacta do meu desejo.

Sou um animal. Necesssito diariamente da transfusão de uma enorme quantidade de calor. Tocas-me?

Vasco Gato, in A Prisão e Paixão de Egon Schiele, & Etc, 2005
10-Das mulheres

As mulheres (digo: algumas) (digo: algumas mulheres, poucas) (digo: algumas mulheres, poucas, e nenhum homem) acalmam-me, tiram-me das minhas circunstâncias. Com o corpo - sexo, pele, boca, mãos -, com a voz, apenas com a presença. Às mulheres tudo me parece possível. Talvez por isso as trate com maior exigência. Quando o não fazem, é porque não querem ou porque os homens são umas bestas. Os homens, prosaicamente, não fazem o que não podem, brutos coitados. Às mulheres pode-se e deve-se (e devem-se) exigir o poema permanente. E criar as condições para que não se tenham de preocupar com nada para além disso. Só isso permite aos machos (alguns, poucos) fugazes fogachos de poesia. Só isso evitará o quase inevitável: que neste mundo haja mais pedreiras do que prados, mais escarevelhos sobrevivendo à fuligem do que cachorros panando-se na areia. Tirésias, que voltou a ser homem depois de ter sido mulher, ensinou-nos que as mulheres sentem dez vezes mais prazer do que os homens. É por isso, estou certo, que se preocupam menos com o que não interessa. E foi também por isso que com elas aprendi o pouco que sei acerca de prioridades: 1ª o prazer 2ª o prazer, 3ª o prazer, e por aí fora. Se assim for, não nos preocupemos com o Céu -tê-lo-emos alcançado aqui em baixo e Deus e os anjos virão ter connosco.

Miguel Martins, in Lérias, Averno, 2011

Todos já fomos artistas plásticos:"As pessoas às vezes me perguntam 'quando você começou a ser artista plástico?'. Eu sempre falo não me lembro quando comecei mas me lembro quando todo o mundo deixou de ser (...) Acho que toda a criança nasce com uma interacção muito sólida com o mundo visual (...) Você já desenhou, já brincou com massinha (...) Eu acho que o artista de uma certa forma é o tipo que mantém uma relação com esse universo pré-linguístico" .


"After 2 Am, go to sleep. All you can decide is wrong"


João Aguardela (1969-2009)







        Cracóvia, 2011
Espectáculo
Dois ou três nomes para o silêncio. Disse: dois ou três nomes para o silêncio. Riem-se e continuam a conversa. Dor, dor, dor. Disse: dor, dor, dor. Riem-se de novo e continuam a conversa. Espeta uma faca no peito, abre-o de lado a lado e mostra a carne que sangra. Riem-se ainda (a cena do faquir, comentam, com autoridade de conhecedor). Arranca o coração do peito, estende-o nas mãos em sangue. Reclamam agora algo mais ousado (é muito fácil o sangue de ninguém). Dobra-se sobre si mesmo para morrer, nas mãos apertado o coração inútil (não havia espectáculo afinal). Voltam a rir, enquanto chamam o empregado para limpar o chão (desfecho tão vulgar para o que se anunciava, concluem). De seguida, retomam a conversa.

Jorge Roque, in  Broto Sofro, Averno, 2008
Se
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas do amor se eternizassem

Sophia de Mello Breyner, in Poesia I, Coimbra, 1945

HOMEM COM CIDADE AO MEIO


I

Se me pedissem para me apresentar, diria:

É na cidade que habito. Não sei se a cidade me habita. Esqueci-me do que me habita. Sou um homem sem memória. Não sinto aquilo de que me lembro.

 Sei que são horas. De quê, nem penso.

Acredito no destino, no sentido mesquinho: levanto-me para que me aconteça alguma coisa. O mesmo de ontem, o mesmo de amanhã.

A rotina é uma espécie de destino pequeno. Sem fatalismos, oiço pela primeira vez o barulho da água.

A manhã trai os desiludidos e os desmemoriados. A luz da revelação é convincente, ofende portas e janelas fechadas. Todos os dias, por algumas horas, é difícil perdoar-me.

Velozes, pouco claras, insuportavelmente provocadoras. Todas as mensagens são contrárias ao meu movimento. Preocupo-me: será que aqueles recados eram para mim?

A impossibilidade da comunicação tem momentos de glória. Ad eternum.

O silêncio pode demorar uma respiração no tempo e ter a materialidade de um corpo falante.

Em todas as despedidas, há uma promessa de brevidade. Mas ela não se cumpre. É fácil que o tempo seja demais para uma espera.

Mas as despedidas não são promessas, são recusas. As que tive, foram definitivas.

Vou caminhar sem pensar na palavra maldição.

Ao meio-dia, sou equidistante dos vários nadas que compõem o meu mapa. Sou o centro de uma circunferência que perdeu a sua linha de definição.

Uma mulher que traz timidamente o ciclo das luas na barriga. Sorri-me. Estranha intimidade. Nunca tinha pensado se são livres no ventre ou na recusa dele, se amam naqueles dias ou se ficam sós a dançar com os seus ritmos. Subitamente, estou com todas as mulheres. Ou quase.

Pode-se sorrir, sim. O apelo conta com o meu conhecimento da linguagem universal, como se fosse impossível ser estrangeiro. Conformado com essa claustrofobia, sorrio muito, e nem me inquieto: sei que o universal trai constantemente as minhas particularidades.

Não corro nenhum perigo. Posso talvez ser espectador, na minha própria cama, de uma imagem de amor. Os corpos são a imagem do amor. A nudez é o amor.

Uma mulher nua disse-me: tu és um crime.

Uma mulher nua, repito. Não despida. Uma mulher desnudada a um ponto tão surpreendente como impossível.

Nunca mais vou pensar em ti nem dizer o teu nome. Tu és um crime, ela repetiu.

Perigo de morte, sem ressentimentos. Ainda a vi sorrir.

Enquanto falava, os olhos iam desaparecendo, e isso impediu-me de lhe responder.

Desde o princípio do mundo que andam à procura da cor dos teus olhos, quero que a mortalha do meu amor seja da cor da grande descoberta.

As cores procuram uma definição em mim, dói-me o caleidoscópio frenético que se contorce.

Percebo a tragédia e a beleza de saber que qualquer coisa em mim é do início do mundo e que ninguém será capaz de encontrar a palavra. Estou finalmente perto dela.

Ruas, becos, avenidas. Ruas, becos, avenidas. Não era aqui que morávamos. Ruas, becos, avenidas.

O meu corpo é um estranho com os pés numa terra que não conhece ou simplesmente que não recorda.

“Pare, escute e olhe”.

Movo-me, oiço, vejo. Nunca consegui chegar a lado nenhum.

Há perigo de atropelamento, de tragédia súbita e irreversível, há até o perigo de viver sem ti. Sem mim.

O que é esta cidade sem nós? Esquerda, direita, leste, sul, este, oeste, são meros pontos de desorientação.

Construí o mapa da desistência tão cuidadosamente que navego nela até à náusea do afogamento.

Sem hesitação, estou pronto para me desviar.

O dia é grande, neste momento o sol está na linha directa da minha cabeça e estou dentro do magma de um planeta recentemente descoberto.

Tenho todos os cientistas a queimarem-me a intimidade. Seguirei qualquer placa, desde que saia da praça que nitidamente sou a esta hora.

O sol - o que era o sol antes de me desviar?

Começo a ter vontade de fazer perguntas, mas tenho a certeza que ninguém conhece o essencial.

Não sinto nada. Percebo que isso já é sentir qualquer coisa.

Estarei com certeza morto porque estou sem ti.



II

Vou tentar explicar-te tudo em imagens.

Sou uma mulher narrativa. Não sei se vou ser capaz.

Sem aforismos.

Assim é o meu amor por ti.

Um derrame.

Espalhou-se pela cidade.

Um dia, ainda tinha todas as palavras e perguntei-te:

Anjo sem habilidade para o voo, o que me contas da estação dos incêndios?

Abandonei o calor estival em todos os sentidos. Da estação feliz guardo apenas as cores que se vêem da parte alta da cidade. De cima, tudo parece memória.

E as palavras são cores inúteis.

Às vezes o país grita e nunca é por amor. Como tu e eu.

Experiência limite. Limite, limítrofe. A fronteira exacta entre mim e ti.

Tiraste-me toda a vitalidade quotidiana, enquanto me descobrias a vida sagrada.

Não consigo abdicar do corpo como tu abdicaste de mim.

Porque não aceitas os países que conquistaste?

 O teu espaço não é o da minha liberdade. Vou invadir o vazio. Já.

 A angústia é física para lembrar ao corpo a hipótese de sobrevivência.

 Chorar dentro de água é a única maneira de vencer as lágrimas.

 À superfície, vejo claramente que os fantasmas são finitos e mortais.

A tua transparência é nítida e não duvido nunca de paisagens tão tristes.

Sei que vais voltar. Tenho pena de já não estar em lado nenhum. Não é possível encontrar-me.



III


Lancei-me na fuga impossível. Criminoso de tudo, neguei qualquer caminho.

Mas agora o caminho são as veias, uma corrida por dentro, cheia de sangue.

Nunca mais é casa e perdi-me. Inadvertidamente, comecei a morrer. Contra ti. Ressuscitar é tão fácil como voltar para trás.

Quero atravessar a cidade das colinas em linha recta, sem inflexões.


Deve haver dias para tudo. A finalidade do tempo é retrospectiva. Hoje, sei que sou gente circulando em liberdade, muita gente a correr desenfreadamente para o lugar onde sou pontual.

Apuro todos os sentidos para regressar. A exposição extrema é incendiária.

Queimo-me. Ensurdeço. Cego. Apanho feridas do chão.

Atravessado por uma cidade onde a tua memória é o único lugar habitável.

Mulher cidade, é aqui que moramos. Volta para onde és. Estou à espera. Roubei o ex-libris dos turistas e estou suspenso por ti em todas as luzes.

(2007)

Andar em pontas:

-demora muitos anos a aprender
-é bonito
-faz-se necessário, quando o chão não tem dignidade
-raramente deixa de doer

É a língua declinada de um corpo em lugar estranho que se quer manter de pé.
Will Barnet [ Woman Reading ] 1970






Lenz via-se um observador do mundo e daí vinha parte da sua grande força: ainda não tinha sido chamado para o centro; a existência era qualquer coisa que ele podia ver - tanto a sua como a dos outros; espectador cuja única preocupação é a alimentação, o sono e a qualidade do espectáculo. Lenz não conseguia esconder que se considerava a única instância decisiva da sua vida. Todos os outros elementos eram secundários naquilo que ele considerava essencial nesse problema - o único problema importante- que era o facto de estar vivo. Uma certa adoração desproporcionada que sempre descolocara para o seu pai tinha, no fundo, por base essa adoração pela auto-suficiência,e os pais-aqueles que lhe haviam dado a possibilidad de ter o problema de estar vivo para resolver - eram os únicos de quem nunca poderia dizer: nada fizeram por mim - porque eles, na verdade, o tinham feito, da cabeça aos pés: uma casa humana.

Gonçalo M.Tavares, Aprender a Rezar na Era da Técnica, Editorial Caminho, 2007

Cantiga de enganar

O mundo não vale o mundo,
                                              meu bem,
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
                 meu bem,
                                  não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê, de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa...e se sobe
algum som desse declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.

Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?

 Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de ouvidar,
de lembrar e de fruir,
do escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
- mas a conta não existe -
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: idéias.
Deixemos o mundo aos outros,

já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
- mas a força não existe -
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
- mas o tempo não existe -,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.


Carlos Drummond de Andrade, in Antologia Poética, Record, 2002 (antologia selecionada pelo autor na década de 60)