HOMEM COM CIDADE AO MEIO
I
Se me pedissem para me apresentar, diria:
É na cidade que habito. Não sei se a cidade me habita. Esqueci-me do que me habita. Sou um homem sem memória. Não sinto aquilo de que me lembro.
Acredito no destino, no sentido mesquinho: levanto-me para que me aconteça alguma coisa. O mesmo de ontem, o mesmo de amanhã.
A rotina é uma espécie de destino pequeno. Sem fatalismos, oiço pela primeira vez o barulho da água.
A manhã trai os desiludidos e os desmemoriados. A luz da revelação é convincente, ofende portas e janelas fechadas. Todos os dias, por algumas horas, é difícil perdoar-me.
Velozes, pouco claras, insuportavelmente provocadoras. Todas as mensagens são contrárias ao meu movimento. Preocupo-me: será que aqueles recados eram para mim?
A impossibilidade da comunicação tem momentos de glória. Ad eternum.
O silêncio pode demorar uma respiração no tempo e ter a materialidade de um corpo falante.
Em todas as despedidas, há uma promessa de brevidade. Mas ela não se cumpre. É fácil que o tempo seja demais para uma espera.
Mas as despedidas não são promessas, são recusas. As que tive, foram definitivas.
Vou caminhar sem pensar na palavra maldição.
Ao meio-dia, sou equidistante dos vários nadas que compõem o meu mapa. Sou o centro de uma circunferência que perdeu a sua linha de definição.
Uma mulher que traz timidamente o ciclo das luas na barriga. Sorri-me. Estranha intimidade. Nunca tinha pensado se são livres no ventre ou na recusa dele, se amam naqueles dias ou se ficam sós a dançar com os seus ritmos. Subitamente, estou com todas as mulheres. Ou quase.
Pode-se sorrir, sim. O apelo conta com o meu conhecimento da linguagem universal, como se fosse impossível ser estrangeiro. Conformado com essa claustrofobia, sorrio muito, e nem me inquieto: sei que o universal trai constantemente as minhas particularidades.
Não corro nenhum perigo. Posso talvez ser espectador, na minha própria cama, de uma imagem de amor. Os corpos são a imagem do amor. A nudez é o amor.
Uma mulher nua disse-me: tu és um crime.
Uma mulher nua, repito. Não despida. Uma mulher desnudada a um ponto tão surpreendente como impossível.
Nunca mais vou pensar em ti nem dizer o teu nome. Tu és um crime, ela repetiu.
Perigo de morte, sem ressentimentos. Ainda a vi sorrir.
Enquanto falava, os olhos iam desaparecendo, e isso impediu-me de lhe responder.
Desde o princípio do mundo que andam à procura da cor dos teus olhos, quero que a mortalha do meu amor seja da cor da grande descoberta.
As cores procuram uma definição em mim, dói-me o caleidoscópio frenético que se contorce.
Percebo a tragédia e a beleza de saber que qualquer coisa em mim é do início do mundo e que ninguém será capaz de encontrar a palavra. Estou finalmente perto dela.
Ruas, becos, avenidas. Ruas, becos, avenidas. Não era aqui que morávamos. Ruas, becos, avenidas.
O meu corpo é um estranho com os pés numa terra que não conhece ou simplesmente que não recorda.
“Pare, escute e olhe”.
Movo-me, oiço, vejo. Nunca consegui chegar a lado nenhum.
Há perigo de atropelamento, de tragédia súbita e irreversível, há até o perigo de viver sem ti. Sem mim.
O que é esta cidade sem nós? Esquerda, direita, leste, sul, este, oeste, são meros pontos de desorientação.
Construí o mapa da desistência tão cuidadosamente que navego nela até à náusea do afogamento.
Sem hesitação, estou pronto para me desviar.
O dia é grande, neste momento o sol está na linha directa da minha cabeça e estou dentro do magma de um planeta recentemente descoberto.
Tenho todos os cientistas a queimarem-me a intimidade. Seguirei qualquer placa, desde que saia da praça que nitidamente sou a esta hora.
O sol - o que era o sol antes de me desviar?
Começo a ter vontade de fazer perguntas, mas tenho a certeza que ninguém conhece o essencial.
Não sinto nada. Percebo que isso já é sentir qualquer coisa.
Estarei com certeza morto porque estou sem ti.
II
Vou tentar explicar-te tudo em imagens.
Sou uma mulher narrativa. Não sei se vou ser capaz.
Sem aforismos.
Assim é o meu amor por ti.
Um derrame.
Espalhou-se pela cidade.
Um dia, ainda tinha todas as palavras e perguntei-te:
Anjo sem habilidade para o voo, o que me contas da estação dos incêndios?
Abandonei o calor estival em todos os sentidos. Da estação feliz guardo apenas as cores que se vêem da parte alta da cidade. De cima, tudo parece memória.
E as palavras são cores inúteis.
Às vezes o país grita e nunca é por amor. Como tu e eu.
Experiência limite. Limite, limítrofe. A fronteira exacta entre mim e ti.
Tiraste-me toda a vitalidade quotidiana, enquanto me descobrias a vida sagrada.
Não consigo abdicar do corpo como tu abdicaste de mim.
Porque não aceitas os países que conquistaste?
Sei que vais voltar. Tenho pena de já não estar em lado nenhum. Não é possível encontrar-me.
III
Lancei-me na fuga impossível. Criminoso de tudo, neguei qualquer caminho.
Mas agora o caminho são as veias, uma corrida por dentro, cheia de sangue.
Nunca mais é casa e perdi-me. Inadvertidamente, comecei a morrer. Contra ti. Ressuscitar é tão fácil como voltar para trás.
Quero atravessar a cidade das colinas em linha recta, sem inflexões.
Deve haver dias para tudo. A finalidade do tempo é retrospectiva. Hoje, sei que sou gente circulando em liberdade, muita gente a correr desenfreadamente para o lugar onde sou pontual.
Apuro todos os sentidos para regressar. A exposição extrema é incendiária.
Queimo-me. Ensurdeço. Cego. Apanho feridas do chão.
Atravessado por uma cidade onde a tua memória é o único lugar habitável.
Mulher cidade, é aqui que moramos. Volta para onde és. Estou à espera. Roubei o ex-libris dos turistas e estou suspenso por ti em todas as luzes.
(2007)
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