26.
Meu pai sempre dizia que o sofrimento melhora o homem, desenvolvendo o seu espírito e aprimorando a sua sensibilidade; ele dava a entender que quanto maior fosse a dor tanto ainda o sofrimento cumpria sua função mais nobre; ele parecia acreditar que a resistência de um homem era inesgotável. Do meu lado, aprendi bem cedo que é difícil determinar onde acaba a nossa resistência, e também muito cedo aprendi a ver nela o traço mais forte do homem; mas eu achava que se da corda de um alaúde - esticada até ao limite- se podia tirar uma nota afinadíssma (supondo-se que não fosse mais que um arranhado melancólico e estridente), ninguém contudo conseguiria extrair nota alguma se a mesma fosse destendida até o rompimento. Era isso pelo menos que eu pensava, até à noite do meu retorno, sem jamais ter suspeitado antes que se pudesse, de uma corda partida, arrancar ainda uma nota diferente (o que só vinha confirmar a possível crença de meu pai de que um homem, mesmo quebrado, não perdeu ainda a sua resistência, embora nada provasse que continuava ganhando em sensibilidade).
Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, Relógio d'Agua, 1999 (or.1975)
El único argumento es ya el de la mirada.
J. M. Caballero Bonald
Brusco e mal feito vejo-me acordar,
os olhos vivos de tempestade – dado que
durmo conspirando comigo –, e a fantasia
segue mas já peço emprestada à
realidade a sua substância. No meu,
a dor de vários corpos, um gesto
de estupor frente ao espelho e a delicada
insensatez das primeiras noções
como pássaros de olhos vazios contra
um céu sem altura.
Um tempo suave e desanimado recorta
os domínios de ninguém, pátios breves
como suspiros, como ecos presos
nestas tardes escondidas.
Depois do grandiloquente pôr do sol,
as cercas de luz vieram abaixo e o que
do dia restou não anima mais que uns
esboços desajeitados. O vento
volta aos seus círculos, extenuadas,
as flores desistem de simular fragrâncias
e tossem com o cair da noite sobre
esta terra de passos contados.
Estar aqui sem que ninguém o saiba
tem a sua mecânica. O meu silêncio
não é nada. Braços cruzados e a mão
com que coço o mundo fica aí,
fria e indiferente. Dentro da garrafa
onde me quebro e perco pé noutra
destas noites ansiosas, sirvo reflexos
que levantam o mesmo copo e se saúdam.
Embriagado de imagens, dominado por
altíssimos impulsos (Though this be madness
there is method in it), gelo de cada vez
que me apanho a falar sozinho.
Nos dias mais fracos, dando conversa
a fantasmas (sempre lúcidos), vem-me esta
vergonha de conservar a vida, de ter
oferecido a sombras os melhores anos.
Sabendo que a verdade de um homem
não lhe serve de nada e é o seu erro
que lhe exige todas as forças,
cada um ergue à sua volta
uma pátria de circunstância. Tudo está
aqui. Temos as nossas causas nobres e
lances amorosos, trocamos
beijos e instruções, sexo e esquecimento.
Mas persiste a sensação de que não
passamos de cadáveres segurando rosas.
Corpos esquivos entrelaçados por
delírios sombrios. Neutras, dóceis figuras
que a loucura aperfeiçoa e a beleza imita
– os detalhes exactos que nos
prendem ao cenário desta noite total.
Luminosos espaços de outro tempo
arrasados pela música, esta sombra larga
e infecta que resume as nossas vidas de
náufragos insaciáveis, reis solitários,
anjos vazios eternamente amotinados.
Quando nos sentamos descalços e sem
camisa, o silêncio chega-se e cheira-nos
as palmas voltadas sobre a mesa
nocturna, pedindo um verso que perdure
como um baloiço entre ruínas.
Diogo Vaz Pinto
Decía que sonó el teléfono al final de la tarde y una voz española me preguntó si hablaba conmigo. Dije que sí, que era yo mismo. Afirmación un poco aventurada no desprovista de presunción. Pero, en fin, la comunicación telefónica no puede tener en cuenta demasiados refinamentos analíticos. Si uno se pone a hacer de Wittgenstein a cada llamada telefónica, es evidente que no habra fin.
Jorge Semprún, Federico Sanchez se Despide de Ustedes, Tusquets Editores, 1993
Jorge Semprún, Federico Sanchez se Despide de Ustedes, Tusquets Editores, 1993
Onde queres revólver, sou coqueiro
Onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alta, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
Onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim
Caetano Veloso
7 Agosto 1942
O amor. Aprender a gostar da própria solidão. Saber retirar-se num rochedo que preserva a ternura. Iludir a dependência para que a posse se torne ecrã de transparência. Amar é celebrar permanentemente o encontro de duas solidões, festejar a sua revelação quotidiana, a sua possível fragmentação na morte, na poesia. Saber-se abandonado pelas estrelas e pelas ondas; viver o amor, a amizade, numa ternura passional. As mulheres de Tetuão, infelizmente, só conhecem a espoliação. A sua essência feminina perde-se nas imagens que os homens tiveram a gentileza de forjar para elas. Eis a razão pela qual as mulheres de Tetuão se retiram, sem fazer barulho, sem quebrar o que quer que seja, na súmula das suas solidões. Os homens tornam-se matéria que se desintegra nos cafés ou clubes masculinos (casinos espanhóis) onde, para se embriagarem sem serem vistos, descem à cave. Falam até perderem a saliva; caem em montículos de areia branca ao lado do seu tamborete; à noite o empregado do café recolhe-os em pequenas alcofas e vai colocá-los à porta de suas casas. As mulheres dormem. Ausentam-se para sonhar.
Tahar Ben Jelloun, "As raparigas de Tetuão", O Primeiro Amor é Sempre o Último, Quidnovi, 2012 (tradução de Ana Tavares)
Tahar Ben Jelloun, "As raparigas de Tetuão", O Primeiro Amor é Sempre o Último, Quidnovi, 2012 (tradução de Ana Tavares)
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