3.
Há um cio vegetal na voz do artista. 
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto
de alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de reflectir sobre as
coisas. Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos,
passarinhos...
Nos restos de comida onde as moscas governam
ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras
a torquês. Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido e escuro.
Vai sambixuga entorpecida gorda pregada na
barriga do cavalo -
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga:
Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer
substantivo escuro dele. Tem que chegar enferma de suas dores, de seus
limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de 
enxergar no olho de uma garça os perfumes 
do sol. 

 Manoel de Barros, in Retrato do Artista Quando Coisa, Editora Record, 2009


Há dois meses, Leslie Moonves, a CEO da CBS Corporation veio anunciar para 2012 um crescimento dos lucros no departamentos de informação do canal na ordem dos 14 por cento. 
«Tudo sem publicidade paga.» 

Aqui
Ciclos menstruais ou mortos televisivos: duas maneiras de contar uma espera. Ou marés ou luas, coisas que caibam nas mãos. Contar números, não histórias. Sobreviver às personagens. Mover o corpo carregado de sentidos, dispensar gruas. Ser um país de refugiados e não partir. Recordar como quem dorme, sem querer e sem falsear. Mentir ao futuro. Cantar, cantar, cantar, até enganar os pássaros.
(O que pensa v. da questão social?)
-Não ha questão social - creio que é "questão social" que as bestas dizem- em parte nenhuma. A Europa é hoje o theatro de um grande conflicto, de um conficto ligeiramente triangular. Estão em guerra, no mundo, duas grandes forças - a plutocracia industrial e a plutocracia financeira. A plutocracia industrial com o seu typo de mentalidade organizadora, a plutocracia financeira com o seu typo de mentalidade especulativa; a industrial com a sua indole mais ou menos nacionalista, porque a industria tem raizes, e liga portanto com as outras forças que as teem, a financeira com a sua indole mais ou menos internacional, porque não tem raizes e nao liga portanto senão comsigo mesma, ou, então só com aquella raça privilegiada que, atravez da finança internacional, se pode dizer que hoje, sem ter patria, dirige e governa as patrias todas.

"Álvaro de Campos, Engenheiro Naval e Poeta Futurista concede ao ( ) uma entrevista sensacional: A situação em Inglaterra- A situação na Europa- A situação de Portugal", in Prosa de Álvaro de Campos, Ática, 2012 (edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello)

Geraldo de Barros
UM ATAQUE DE FEBRE

Existem na nossa vida manhãs privilegiadas em que chega até nós a advertência, em que logo que acordamos ressoa para nós, através de uma deambulação ociosa que se prolonga, uma nota mais grave, como quem se demora, de coração confundido, a manejar um a um os objectos familiares do seu quarto no instante de uma grande partida. Qualquer coisa como um alerta longínquo se introduz em nós naquele vazio claro da manhã mais pleno de presságios do que os sonhos; é talvez o ruído de uns passos isolados numa calçada, ou o primeiro grito de um pássaro que chega debilmente através do último sono; mas esse ruído de passos  desperta na alma uma ressonância de catedral vazia, esse grito passa como que sobre os espaços do horizonte, e o ouvido apura-se no silêncio sobre um vazio em nós que de repente tem outro eco além do mar. A nossa alma purgou-se dos seus rumores e do vozear da multidão que a habita; uma nota fundamental rejubila nela, despertando-lhe a exacta capacidade. Na medida íntima da vida que nos é devolvida, renascemos para a nossa força e para a nossa alegria, mas às vezes essa nota é grave e surpreende-nos como o passo de um transeunte que faz ressoar uma caverna: é que uma brecha se abriu durante o nosso sono, é que uma parede nova se desmoronou sob a pressão dos nossos sonhos, e teremos que viver agora por longos dias como num quarto familiar cuja porta desse inopinadamente para uma gruta.

Julien Gracq, A Costa das Sirtes, Vega (tradução de Pedro Tamen)

"Encoberto", Yuky Aoyawa





"Lhasa", Olivio Barbieri

PHOTOESPAÑA, aqui


Chris Bierrenbach
O que leva alguém a ser pequeno quando pode ser grande? Não será uma modéstia que não é apropriada ao cargo, não será humildade porque esta, quando verdadeira, não se avizinha do poder. Será outra coisa: uma combinação das limitações para a missão a que se foi destinado com uma atracção pela pequenez. Disto resulta, passado um ano em que não se quis ter um Ministério da Cultura e se acabou por ter um secretário de Estado da dita, sem poder para decidir, sem assento no Conselho de Ministros, sem voz, sem representar ninguém e, ademais, apoucando-se por falta de perfil e de projecto e de programa.


António Pinto Ribeiro, "Um Ano Depois", aqui
Ipsilon/Público, 20 Junho 2012
SILÊNCIO

Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo desaparece num momento

Cheguei lá quase à noite

No coração durava o ruído
das cigarras

Do navio
envernizado de branco
eu vi
a minha cidade perder-se
deixando
um pouco
um abraço de lumes no ar indeciso
suspensos

Giuseppe Ungaretti, in Sentimento do Tempo, Cadernos de Poesia, Publicações D. Quixote, 1971 (tradução de Orlando de Carvalho)