Naquele instante
Amor só vem mais tarde, amar
só vem depois, amor é quando
tudo se foi, virá no próximo
trem, talvez no ano que vem
tudo será, por ora, pressentimento,
presságio, bilhete em branco do bem
gratuito para depois de gastos vultuosos
tributos de desamor e de nada.
Amarmos começa no fim? Amor
se escreve ao contrário? Roma,
porém, não abrirá palácios senão,
quem sabe, no próximo feriado.
Moroso, é após tudo pronto
o amor quando, tardiamente,
já não damos por nada ou
damos só tempo ao tempo.
trem, talvez no ano que vem
tudo será, por ora, pressentimento,
presságio, bilhete em branco do bem
gratuito para depois de gastos vultuosos
tributos de desamor e de nada.
Amarmos começa no fim? Amor
se escreve ao contrário? Roma,
porém, não abrirá palácios senão,
quem sabe, no próximo feriado.
Moroso, é após tudo pronto
o amor quando, tardiamente,
já não damos por nada ou
damos só tempo ao tempo.
Eucanãa Ferraz, in Sentimental, Companhia das Letras, 2012
PORMENOR
Um grupo de marinheiros sugere um convento cheio de terra, por detrás do mar, como um fantasma devolvido à terra.
Morre no mar a estrada de santiago, morrem as águas nos ventos e nas mãos pedaços de inverno. Um lobo e um barco encontram-se num sonho pela primeira vez.
Soldados cegos invertem o coração e nos campos os velhos contam histórias de prisioneiros enquanto as mulheres despem o nome do noivo e tomam um moço na cama.
Do outro lado do horizonte, geme agitada a cidade onde os homens se ligam por um entendimento de poeira e dons.
Fernando Alves dos Santos, in Surrealismo/Abjeccionismo, Selecção de Mário Cesariny, Edições Salamandra, 1992 (edição fac-similada do original de 1963)
Um grupo de marinheiros sugere um convento cheio de terra, por detrás do mar, como um fantasma devolvido à terra.
Morre no mar a estrada de santiago, morrem as águas nos ventos e nas mãos pedaços de inverno. Um lobo e um barco encontram-se num sonho pela primeira vez.
Soldados cegos invertem o coração e nos campos os velhos contam histórias de prisioneiros enquanto as mulheres despem o nome do noivo e tomam um moço na cama.
Do outro lado do horizonte, geme agitada a cidade onde os homens se ligam por um entendimento de poeira e dons.
Fernando Alves dos Santos, in Surrealismo/Abjeccionismo, Selecção de Mário Cesariny, Edições Salamandra, 1992 (edição fac-similada do original de 1963)
Lambe-te o fogo cada ruga e pêlo,
e a água onde mergulhas logo encerra
em fresca e fina luva o corpo inteiro
e sem pudor algum te abraça e beija.
Mesmo o vulgar sabão, no tanque absorto,
pela nudez da carne se insinua
e entre as coxas flutua, como um peixe
mais branco, que outra sombra continua.
Mas eu, quando me cubro do teu rosto
e sou somente de água e fogo feito,
melhor ainda te conheço e quero,
e nada no teu corpo me é alheio:
em cada grão de pele te desejo,
em cada ruga leio o meu destino.
António Franco Alexandre
e a água onde mergulhas logo encerra
em fresca e fina luva o corpo inteiro
e sem pudor algum te abraça e beija.
Mesmo o vulgar sabão, no tanque absorto,
pela nudez da carne se insinua
e entre as coxas flutua, como um peixe
mais branco, que outra sombra continua.
Mas eu, quando me cubro do teu rosto
e sou somente de água e fogo feito,
melhor ainda te conheço e quero,
e nada no teu corpo me é alheio:
em cada grão de pele te desejo,
em cada ruga leio o meu destino.
António Franco Alexandre
Coimbra, 3 de Dezembro de 1980
A conversa foi longa e enrodilhada. Um dizia, o outro respondia, e o rio de palavras ia correndo sem chegar a nenhuma foz. Até que de repente surgiu na escuridão do diálogo a luz de uma síntese que satisfez os dois:
-O homem, quando toca uma mulher, sente-se pecador; a mulher, quando é tocada, sente-se salva.
Miguel Torga, Diário XIII, 1983
A conversa foi longa e enrodilhada. Um dizia, o outro respondia, e o rio de palavras ia correndo sem chegar a nenhuma foz. Até que de repente surgiu na escuridão do diálogo a luz de uma síntese que satisfez os dois:
-O homem, quando toca uma mulher, sente-se pecador; a mulher, quando é tocada, sente-se salva.
Miguel Torga, Diário XIII, 1983
Ele tem pertinências para árvore
O pé vai-se alargando, via de calangos, até ser
raizame. Esse ente fala com águas.
É rengo de voz e pernas.
Se esconde atrás das palavras como um perro.
Formigas se mantimentam nas nódoas do seu casaco.
De um turvo cheiro órfico os caracóis o escurecem.
Um Livro o ensinou a não saber nada - agora já sabe.
Estrela encosta quase em sua boca descalça.
Manoel de Barros, in O Guardador de Águas, Editora Record, 2009
LITTLE GIDDING
III
Há três condições que muitas vezes se confundem
Mas que diferem completamente e vicejam na mesma sebe:
Apego a si próprio e a coisas e a pessoas, desapego
De si próprio e das coisas e das pessoas; e, crescendo entre
ambos, a indiferença
Que se assemelha às outras como a morte se assemelha à vida,
Estando entre duas vidas, a desflorir , entre
A urtiga viva e a urtiga morta. Este é o uso da memória:
Para a libertação- não menos amor
mas alargamento do amor para além do desejo, e assim libertação
Do futuro tal como do passado. Assim o amor por um país
Começa como apego ao nosso campo de acção
E acaba por achar essa acção pouco importante
Embora nunca indiferente. A história pode ser servitude,
A história pode ser liberdade. Vê, agora desaparecem,
Os rostos e os sítios, com o ser que os amou como pôde,
Para ficarem renovados, transfigurados, num outro padrão.
O pecado é-nos Próprio, mas
Tudo há-de ficar bem, e
Toda a espécie de coisa há-de ficar bem.
Se penso, de novo, neste lugar,
E em pessoas, não inteiramente recomendáveis,
Sem linhagens nem gentileza claras,
Mas algumas de um génio peculiar,
Todas com um toque de um génio comum,
Unidas na contenda que as dividia;
Se penso num rei ao anoitecer,
Em três homens, e mais, no cadafalso
E alguns que morreram esquecidos
Em outros lugares, aqui e lá fora,
E num que morreu cego e calmo,
Porque haveríamos de comemorar
Estes mortos mais do que os moribundos?
Não se trata de tocar o sino a anunciar o passado
Não se trata de um encantamento
Para conjurar o espectro de uma Rosa.
Não podemos restabelecer velhas políticas
Ou seguir um antigo tambor.
Estes homens a quem eles se opuseram
Aceitam a constituição do silêncio
E estão agrupados num único rebanho.
Seja o que for que herdemos dos que prosperam
Já recebemos dos derrotados
O que tinham para nos deixar - um símbolo:
Um símbolo aperfeiçoado na morte.
E tudo há-de ficar bem e
Toda a espécie de coisa há-de ficar bem
Pela purificação do motivo
No solo da nossa súplica.
T.S. Eliot, in Quatro Quartetos, Relógio d'Água, 2004, or. 1944 (tradução de Gualter Cunha)
III
Há três condições que muitas vezes se confundem
Mas que diferem completamente e vicejam na mesma sebe:
Apego a si próprio e a coisas e a pessoas, desapego
De si próprio e das coisas e das pessoas; e, crescendo entre
ambos, a indiferença
Que se assemelha às outras como a morte se assemelha à vida,
Estando entre duas vidas, a desflorir , entre
A urtiga viva e a urtiga morta. Este é o uso da memória:
Para a libertação- não menos amor
mas alargamento do amor para além do desejo, e assim libertação
Do futuro tal como do passado. Assim o amor por um país
Começa como apego ao nosso campo de acção
E acaba por achar essa acção pouco importante
Embora nunca indiferente. A história pode ser servitude,
A história pode ser liberdade. Vê, agora desaparecem,
Os rostos e os sítios, com o ser que os amou como pôde,
Para ficarem renovados, transfigurados, num outro padrão.
O pecado é-nos Próprio, mas
Tudo há-de ficar bem, e
Toda a espécie de coisa há-de ficar bem.
Se penso, de novo, neste lugar,
E em pessoas, não inteiramente recomendáveis,
Sem linhagens nem gentileza claras,
Mas algumas de um génio peculiar,
Todas com um toque de um génio comum,
Unidas na contenda que as dividia;
Se penso num rei ao anoitecer,
Em três homens, e mais, no cadafalso
E alguns que morreram esquecidos
Em outros lugares, aqui e lá fora,
E num que morreu cego e calmo,
Porque haveríamos de comemorar
Estes mortos mais do que os moribundos?
Não se trata de tocar o sino a anunciar o passado
Não se trata de um encantamento
Para conjurar o espectro de uma Rosa.
Não podemos restabelecer velhas políticas
Ou seguir um antigo tambor.
Estes homens a quem eles se opuseram
Aceitam a constituição do silêncio
E estão agrupados num único rebanho.
Seja o que for que herdemos dos que prosperam
Já recebemos dos derrotados
O que tinham para nos deixar - um símbolo:
Um símbolo aperfeiçoado na morte.
E tudo há-de ficar bem e
Toda a espécie de coisa há-de ficar bem
Pela purificação do motivo
No solo da nossa súplica.
T.S. Eliot, in Quatro Quartetos, Relógio d'Água, 2004, or. 1944 (tradução de Gualter Cunha)
46.
JUNTO AO FOGO
Decidiu abandonar as mulheres e, por longo tempo, de facto, viveu só. Passeava, olhava as árvores e frequentava o café sem voltar o rosto para qualquer mulher bela.
Mas um dia, uma jovem colocou-se ao seu lado e disse-lhe que o amava. Durante muitos dias o homem recusou-a, até que a mulher deixou de vir ao café, desaparecendo sabe-se lá para onde.
Só agora, aquele tal, foi sacudido por tão grande amor que percorreu, a pé, toda a cidade, até que parou a conversar com uma daquelas mulheres que vive junto às fogueiras, na periferia E nem reparou que era a mesma rapariga que o amava.
Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Assírio & Alvim, 2002 (tradução de Mário Rui de Oliveira)
A CIÊNCIA DO AMOR
O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria
Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam
Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam
José Tolentino Mendonça, in Estação Central, Assírio & Alvim, 2012
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