SOBREVIVIENTES

Ante todo tú eras un sueño visual
Te vi violeta y vi tu pisada insonora
Una tarde más tarde me sorprendió en la calle
tu figura otra vez estallante

Eres ubicua o qué? Tus ojos matemáticos
son los mismos que puse en mi mesa de noche
desde el primer encuentro de asombro y estupor
cuando te acercas y me soplas en la cara

Marchamos juntos luego hacia el palacio puro
donde el lago del lecho sustituyó el rincón
polvoriento de nuestras superbas soledades

Hasta quando? Quièn de los dos? Quien de los dias
levantará el primero la estatua del olvido?
Los instantes son lentos y la ansia del amor
pide dudosamente un despacio incapaz

Amiens, 24 marzo 1972

Carlos Edmundo de Ory, in Miserable Ternura-Cabaña, Ediciones Hipérion, 1981


Regressaram, os jacarandás. Explodem de roxo eléctrico. Acendem-se aos primeiros calores. Avassalam o negrume. Têm um pouco de samba no nome. Ou de sumo fresco. Ou de sol que nasce no mar. Também de ti me ficou esta estranheza, na voz, nos ciclos, na maneira de florir. Passaram séculos. Estações morreram sobre nós. Regressaremos, mas não aqui. E tu, raiz de outro verão, estarás na seiva de todas as vezes que for feliz.   
Poema inédito

Fôssemos merecidos de água, de chão, de rãs, de árvores, de brisas e de graças!
Nossas palavras não tinham lugar marcado. A gente andava atoamente em nossas origens.
Só as pedras sabiam o formato do silêncio. A gente não queria significar, mas só cantar.
A gente só queria demais era mudar as feições da natureza. Tipo assim: Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas da manhã. Ou tipo assim: Nós vimos uma formiga frondosa ajoelhada na pedra.
Aliás, depois de grandes a gente viu que o cu de uma formiga é mais importante para a
humanidade do que a Bomba Atômica.



Manoel de Barros
Em forma de agradecimento, aqui
SEGISMUNDO

  Sim, já é hora de acordar.
Caldéron de La Barca


Cai a noite e treme o teu corpo de rapaz
como todas as noites.

É tudo o que existe, e em tudo o que existes
há luz de cárcere.

Se não adormeces já, se esperas e amanhece,
morrerás de sonho.

Angél Mendoza, in Criatura 6 (tradução de Inês Dias)
No amor, não há vergonha nem crime, 
excepto quando o sacrificamos,
 ainda que por bons motivos.

Yasmina Khadra, O que o Dia Deve à Noite, (tradução de Maria Carvalho) Bizâncio, 2009
Entretanto, iam acontecendo dias e noites, passos pelos corredores, barulhos na rua, sapatos a descalçar, sopas de legumes e grandes copos de água bebida a sorvos rápidos. Às vezes dava pela minha própria presença ao ponto de ficar espantado com isso. E eu não tinha amigos porque amigos não me tinham.
Havia a alegria de descer as escadas a correr e às escuras, pois eu sabia os degraus de cor. E também me sucedia acordar a meio da noite, a pensar, de olhos abertos, com braços e pernas e tudo, no meio dos lençóis; e os grandes ratos que havia na cave vinham trotar pelos corredores: eu ouvia aquele barulho sacudido e molhado (como se eles tivessem pernas de papelão) e isso era divertido!
Uma noite, ao jantar, começou a ouvir-se um ruído raspado pela chaminé abaixo e, quando todos se tinham calado a olhar para o fogão apagado, um melro entrou e poisou-se na laje, em frente ao fogão. E ele olhou para toda a gente, com a comprida cauda a pulsar de espanto, após o que, borrou-se. Uma das minhas tias gritou que aquilo era um aviso do destino, mas o melro levantou voo e começou a bater nas paredes e nas cortinas, e às vezes atravessava a sala de jantar de lés-a-lés, voando curvileneamente de forma que passava junto às cabeças de todos, e havia gritos.
Um primo de cabelos brancos e bochechas muito encarnadas levantou-se, e disse que ia caçar o melro. Eu percebi que este estava muito pouco contente, e que só desejava sair de uma casa onde nunca tinha querido entrar, para começar. Esse primo de cabelos brancos não vivia connosco mas viera jantar nessa noite. Ele agarrou uma almofada de veludo roxo e atirou-a ao melro, que caiu embrulhado na almofada, que era muito mole, resvalando o conjunto por uma parede abaixo. Então eu peguei numa romã e arremessei-a com toda a força à cabeça encarnada e branca desse primo que não vivia connosco e se chamava Jaime.
Estava tudo a olhar para o melro, e por isso eu pensei que não me vissem. Mas uma criada que entrava observou o meu gesto e fui imediatamente empurrado até ao meu quarto. Bateram-me bastante, nos dois lados da cara, e nunca cheguei a saber o que finalmente aconteceu àquele pássaro.

Nuno Bragança, A Noite e O Riso, Moraes Editores, 1969


Santorini, 2007







Riding on this know-how 

Never been here before 
Peculiarly entrusted 
Possibly that's all 
Is history recorded? 
Does someone have a tape? 
Surely, I'm no pioneer 
Constellations stay the same

Just a little bit of danger 
When intriguingly 
Our little secret 
Trusts that you trust me 
'Cause no one will ever know 
That this was happening 
So tell me why you listen 
When nobody's talking 

What is there to know? 
All this is what it is 
You and me alone 
Sheer simplicity 

Kings of Convenience
MEMORIA

                                          a Jorge Gaitán Durán


Arpa de silencio
en donde anida el miedo.
Gemido lunar de las cosas
significando ausencia.

Espacio de color cerrado.
Alguien golpea y arma
un ataúd para la hora,
outro ataúd para la luz.

Alejandra Pizarnik, in Poesia Completa, Lumen, 2000
 

André Kertèsz, Chez Mondrian, Paris 1926



Estranho é o Sono que não te Devolve

Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração. 

Daniel Faria, in Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 2002
FUGA EN LILA

Habia que escribir sin para qué, sin para quién.

El cuerpo se acuerda de un amor como encender la lámpara.

Si silencio es tentation y promessa.


Alejandra Pizarnik, in Poesía Completa, Lumen, 2000
























Rio de Janeiro, 2010
poema

Reconheço este quarto impermeável
reconheço-te        estás adormecido
o peito muito aberto    as mãos luminosas
o grande talento dos teus dentes miúdos

Há o perigo de um grito lindíssimo
quando andas assim      comigo      no invisível

Quando a manhã vier sairás comigo
para o espaço que nos falta    para o amor
que nos falta

A aurora está fatigada

a aurora
como um rio nosso
em torno dos elevadores

Tinha eu a idade
de um marselhês
silencioso
               e tímido
Tu davas-me a lousa dos magos

o teu        riso      as letras
                      mais obscuras do alfabeto

Foi há muito tempo
                 ou agora
na caverna dos leões expressivos

A caverna que dá para a caverna
a caverna               os lagos diligentes

Belo        tu és belo
como um grande espaço cirúrgico

Porque tu não tens nome              existes

A minha boca
sobe à tua boca

A minha boca
perdeu a memória
não pode falar     as palavras entram no seu túnel
e não é preciso segui-las

Disse que és alto
alto
branco e despovoado

Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 1999


Um coração de sangue

Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão

Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
-Mais interior do que o sangue no coração que me darás-

Peço um coração
Nuclear



Daniel Faria
, in Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 2002
















                                                    





 Lisboa, 2012


Sou esta meteorologia que pássaro nenhum adivinha:

Não chego a ter um corpo que recordem.
Amo graus subterrâneos.
Descubro raízes que transbordam.
Espero de repente.
Choro sobre meridianos errados.
Entendo a linguagem das estações ferozes.
Sonho com o magma terrestre.
Rezo a palavra decisiva dos animais.


CLARIDADE DADA PELO TEMPO

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
         nós sabemos
              tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir


                                 II


Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
                   a minha única cama
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti
                 e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
        perdido para sempre


                             III


Viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro
.
um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem
dessa outra existência
em que a morte e a memória
ainda nada significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
em que,
por erro nosso ou dos outros,
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas    seguras    aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda cada vez mais
esmagar com cuidado
com extremo cuidado
dilacerar suavemente

nos olhos
está o amor


                        IV


Simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar
talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra    trópico    lâmina
entre nós dois

        ouve o que te digo
não esqueças os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures    não    nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva


                           V


Eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins

o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento    só o vento
soprado através
dos teus cabelos

Mário Henrique Leiria, in Surrealismo Abjeccionismo, Edições Salamandra, 1963 (organizada por Mário Cesariny de Vasconcelos)
INFERNO, 1, 32

Desde o crepúsculo do dia até ao crepúsculo da noite, um leopardo, nos anos finais do século XIII, via umas tábuas de madeira, uns barrotes verticais de ferro, homens e mulheres mudáveis, um paredão e talvez uma telha de pedras com folhas secas. Não sabia, não podia saber, que ansiava por amor e crueldade e pelo quente prazer de despedaçar e pelo vento com cheiro a veado, mas alguma coisa nele se afogava e rebelava e Deus falou-lhe num sonho: Vives e morrerás nesta prisão, para que um homem que eu sei te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e introduza a tua figura e o teu símbolo num poema, que tem o seu preciso lugar no enredo do universo. Sofres o cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema. Deus, durante o sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou esse destino, mas somente houve nele, quando despertou, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é muito complexa para a simplicidade de uma fera.
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustificado e tão sozinho como qualquer outro homem. Num sonho, Deus revelou-lhe o secreto propósito da sua vida e do seu trabalho. Dante, maravilhado, soube por fim quem era e o que era e abençoou as suas amarguras. A tradição refere que, ao acordar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, qualquer coisa que não poderia recuperar, nem vislumbrar sequer, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade dos homens.

Jorge Luís Borges, in Poemas Escolhidos, Dom Quixote, 2003 (selecção do autor e tradução de Ruy Belo)


POEMA PARA LEMBRAR ALICE NO ESPELHO

Aqui no lendário e no real
A nossa história resulta semelhante
À dessa maravilhosa rapariga que penetrou no espelho
Esteve sempre à beira de desaparecer
Mas ninguém pronunciou a fórmula que a devolveria ao pó
Nem Tweedlerdum nem Tweedledee nem a Rainha nem o Rei de Copas
Que não tinha nada para fazer senão acordar
Talvez sejamos um conto
Talvez sem que nunca nos acautelemos
A nau de Ulisses
Ou o rouxinol de Keats
(Esse pássaro não destinado à morte)
Digamos então que foi um canto da Odisseia
Continuará sendo nós
Sem deixar por isso de ser o país das maravilhas
E alguém poderá reconhecer-nos
Ao ouvir esta história ainda não escrita
Na história castelo a história lua múltipla
Na história brinquedo destruído
A história enfim quando passou uma nuvem sobre Alice

Talvez sejamos a sombra desse azul na sua mão

Giovanni Quessep, in Um País que Sonha. Cem anos de poesia colombiana (1865-1965), Assírio & Alvim, 2012 (selecção de Lauren Mendinueta e tradução de Nuno Júdice)