CLARIDADE DADA PELO TEMPO
Deixa-me
sentar numa nuvem
a mais
alta
e dar
pontapés na Lua
que era
como eu devia ter vivido
a vida
toda
dar
pontapés
até
sentir um tal cansaço nas pernas
que
elas pudessem voar
mas não
é possível
que
tenho tonturas e quando
olho
para baixo
vejo
sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas
por uma enorme quantidade
de
sombras
dá-me
um cão ou uma bola
ou
qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me
os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o
sono que me pediste uma vez
e que
transformaste apenas para
teu
prazer
nos
nossos encontros e nos nossos
dias
perdidos e achados logo em
seguida
depois
de terem passado
por uma
ponte feita por nós dois
em
qualquer sítio me serve
encontrar
o teu cabelo
em
qualquer lugar me bastam
os teus
olhos
porque
sentado
numa nuvem
na lua
ou em
qualquer precipício
eu sei
que as
minhas pernas
feitas
pássaros
voam
para ti
e as
tonturas que a planície me dá
são
feitas por nós
de
propósito
para
irritar aqueles que não sabem
subir e
descer as montanhas geladas
são
feitas por nós
para
nunca nos esquecermos
da
beleza dum corpo
cintilando
fulgurantemente
para
nunca nos esquecermos
do
abraço que nos foi dado
por um
braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois
de tudo
apenas
existem os nossos corpos
rutilantes
até se
perderem no
limite
do olhar
dá-me
um cigarro
mesmo
que seja só um
já me
basta
desde
que seja dado por ti
mas não
me leves
não me
tires
as
tonturas que eu teria
que eu
terei
sempre
que penso cá de cima
duma
altura vertiginosa
onde a
própria águia
nada
mais é que um minúsculo
objecto
perdido
onde a
nuvem
mais
alta de todas
se
agasalha como um cão de caça
leva-me
a recordação
apenas
a recordação
da vida
martelada
que em
mim tem ficado
como
herança dada há mil e
duzentos
anos
deixa
que eu fique
muito
afastado
silencioso
e único
no alto
daquela nuvem
que
escolhi
ainda
antes de existir
II
Deixa
que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o
que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me
quebrar o cavalo que me deste
na
noite do nosso primeiro encontro
deixa-me
partir a bola o cão o espaço
deixa-me
quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama
não
quero que me contem a aventura
nem que
me dêem almofadas
não
quero que me ofereçam sombras
só por
mim construídas e logo abandonadas
nem
sequer esquinas de ruas
não
quero a vida
sei
claramente que a não quero
a não
ser que ela esteja partida quebrada
quebrada
por mim e por ti
e a minha infância
essa
dou-ta
inteira
muito longa e cruel
deixa
que dela me fique apenas
essa
crueldade
e que
nela só eu siga
ignorando
o que me deste
e que
martelo
ou pedra
eu
continue partindo quebrando
esfacelando
dilacerando
o teu
corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me
ser anatomicamente autêntico
sem
erro
sangrando
perdido para sempre
III
Viver
com a crueldade
da
criança que
tira os
olhos ao pássaro
.
um desconhecido
movendo-se
constantemente
no
deserto
em que
cada pegada deixa
bem
marcada na areia
a
imagem
dessa
outra existência
em que
a morte e a memória
ainda
nada significam
mais
alto
muito
mais alto talvez
que a
claridade
do voo
das aves que
partem
para o desconhecido
o
próprio corpo nada mais é
do que
a sombra
bem
simples por sinal
em que,
por
erro nosso ou dos outros,
já não
existe
a
persistência do que
foi
perdido
e as
mãos
as mãos
que sentimos
bem
presas seguras aptas
essas
todos sabemos
que
podem ainda cada vez mais
esmagar
com cuidado
com
extremo cuidado
dilacerar
suavemente
nos
olhos
está o
amor
IV
Simples
como é
a
claridade é a coisa
mais
difícil de encontrar
talvez
porque a distância que nos
separa
longa muito longa
e
nítida
seja a
torre de chumbo do nosso
próprio
isolamento
talvez
porque sentir
o
aparecimento da madrugada
seja a
origem do desespero
sombra trópico
lâmina
entre
nós dois
ouve o que te digo
não
esqueças os meus lábios
mesmo
quando desfeitos
e a
claridade
essa
não a procures não nunca
deixa-a
ir comigo
até ao
esgotamento do meu sangue
até ao
limite
do meu
corpo em carne viva
V
Eu sei
que há
um lugar por descobrir
um
lugar tenebroso e cantante
como
uma ponte de velhos manequins
aí
o teu
corpo
dois
seios despedaçados
e o
vento só o vento
soprado
através
dos
teus cabelos
Mário Henrique Leiria, in Surrealismo Abjeccionismo, Edições Salamandra, 1963 (organizada por Mário Cesariny de Vasconcelos)
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