Entretanto, iam acontecendo dias e noites, passos pelos corredores, barulhos na rua, sapatos a descalçar, sopas de legumes e grandes copos de água bebida a sorvos rápidos. Às vezes dava pela minha própria presença ao ponto de ficar espantado com isso. E eu não tinha amigos porque amigos não me tinham.
Havia a alegria de descer as escadas a correr e às escuras, pois eu sabia os degraus de cor. E também me sucedia acordar a meio da noite, a pensar, de olhos abertos, com braços e pernas e tudo, no meio dos lençóis; e os grandes ratos que havia na cave vinham trotar pelos corredores: eu ouvia aquele barulho sacudido e molhado (como se eles tivessem pernas de papelão) e isso era divertido!
Uma noite, ao jantar, começou a ouvir-se um ruído raspado pela chaminé abaixo e, quando todos se tinham calado a olhar para o fogão apagado, um melro entrou e poisou-se na laje, em frente ao fogão. E ele olhou para toda a gente, com a comprida cauda a pulsar de espanto, após o que, borrou-se. Uma das minhas tias gritou que aquilo era um aviso do destino, mas o melro levantou voo e começou a bater nas paredes e nas cortinas, e às vezes atravessava a sala de jantar de lés-a-lés, voando curvileneamente de forma que passava junto às cabeças de todos, e havia gritos.
Um primo de cabelos brancos e bochechas muito encarnadas levantou-se, e disse que ia caçar o melro. Eu percebi que este estava muito pouco contente, e que só desejava sair de uma casa onde nunca tinha querido entrar, para começar. Esse primo de cabelos brancos não vivia connosco mas viera jantar nessa noite. Ele agarrou uma almofada de veludo roxo e atirou-a ao melro, que caiu embrulhado na almofada, que era muito mole, resvalando o conjunto por uma parede abaixo. Então eu peguei numa romã e arremessei-a com toda a força à cabeça encarnada e branca desse primo que não vivia connosco e se chamava Jaime.
Estava tudo a olhar para o melro, e por isso eu pensei que não me vissem. Mas uma criada que entrava observou o meu gesto e fui imediatamente empurrado até ao meu quarto. Bateram-me bastante, nos dois lados da cara, e nunca cheguei a saber o que finalmente aconteceu àquele pássaro.
Nuno Bragança, A Noite e O Riso, Moraes Editores, 1969
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