No fundo, o que um prédio vazio ou mal projectado cria é um intervalo, uma cratera monumental na vida que fomos treinados a compreender, primeiro, como sucessiva, e, em seguida, como simultânea. Sim, porque nos acostumaram à idéia de que um fato sucede ao outro - nascemos, amamos, adoecemos, morremos. Aos poucos, no entanto, a idéia bem mais difícil  e monstruosa de simultaneidade vai tomando o lugar da outra, gravando em nós uma consciência aflita diante desse excesso de ser e vida, que massacra o que somos agora e o que seremos em seguida. Não é possível simular verdadeiramente em nossa mente algumas centenas de chineses lendo, neste momento, a Quinta Meditação ou quarenta e dois saltadores correndo a toda a velocidade com suas varas até o trapézio à frente. É muito provável que dezenas de pessoas estejam agora escrevendo a palavra provável. Quantos ataques epiléticos? Quantos cuspiram? A simultaneidade torna o presente infindável, como uma linha de produção fordista ou células cancerígenas reproduzindo-se alucinadamente. Ela é o verdadeiro castelo onde nunca vamos entrar, a ampulheta da areia de tudo pendurada num único instante, indiferente ao nosso amor por isto ou aquilo - e para nos defender é preciso beber cada gota do seu antídoto, amar cada grão, conhecer seu formato, prezar em cada ácaro um universo inteiro e se debruçar sobre a coberta humilde, sobre a marca de outro rosto no travesseiro, rasgar o pão no maior número possível de pedaços, utilizar enfim os dois recursos de que dispomos contra ela: a arma rigorosa, geométrica, da memória, com suas listas de chamada, e a arma súbita, poética, da epifania.

Nuno Ramos, Ó, Cotovia, 2010

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