Já estive em lugares áridos, sem possibilidade de mapa. Entrei e saí da mesma maneira, segura de um quotidiano qualquer que supostamente me conta. Narrativa automática, rotatividade maquinal de uma existência tranquila, sem doenças, com sorrisos. Está tudo bem enquanto o corpo for este competente falsário.
É frequente não sentir ou sentir demais, o que é, no fundo, a mesma coisa. Os lugares áridos, no entanto, são toponímia de transparência, onde o desejo de tocar os ossos é mais nítido e de repente a pele é um entrave gigante entre um corpo e a sua realidade.
Um campo de morte transformado em museu, uma mesa noctívaga rodeada de gente, uma cama onde está alguém que começa mesmo ali ao lado. Há uma proximidade impossível, um encontro permanentemente adiado na evidência desse contacto. Os mapas poderiam ser úteis, se soubesse de onde partia. 
É tudo polido e correcto, como uma família do século XIX que se compõe geometricamente para o daguerreótipo. Imaginem-se as linhas certas de gente tão íntima quanto estranha, num tempo em que o amor era um efeito secundário dos costumes. Ousado absurdo, o da invenção da fotografia, nesse pequeno grande equívoco do rigor técnico.
Como nessas imagens de perfeição que envelhecem e se mancham, desafio vencido pelos anos, assim eu, no meu tempo informatizado, certa, com razão, ensaio lógico que tantas vezes quero destruir. É saber que temos ossos, saber com os próprios ossos, a única possibilidade de orientação.

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A VIAGEM

Chego a este lugar enorme. Enorme em área, digamos suficiente para plantar a sobrevivência vegetal de mil gerações. Enorme em peso: meço pela multidão à minha volta os quilos de memória, ao ponto de acharmos que chega para todos. Enorme em vazio: um calendário evidente goza com as nossas boas intenções.
Sabemos que:
Aqui fizeram-se filmes.
Realizaram-se experiências científicas.
Chegaram comboios de todo o mundo.
Esperavam animais. Construíram estábulos e em cada um cabiam 800.
O arame farpado está intacto. É histórico e já não magoa.
Sem que ficassem com qualquer marca, em um ano, 1 milhão trezentas e cinquenta e sete pessoas visitaram este espaço.
Mais ou menos o número de mortos, no mesmo sítio, num período de 3 anos, a uma velocidade cronometrada de poucas semanas.
Onde agora há máquinas de chocolates, dantes havia: um chá pela manhã, um caldo ao almoço, um quarto de pão ao jantar.
Para trás e para nós, restaram cabelos, dentes, tachos e sapatos.
Estico os braços no meio de tudo e não toco nada. Quero um corpo universal. Em vez disso, alcanço vagamente um americano que pergunta: porque não fugiam? Um sobrevivente diria: se estivesse morto, não teria podido ouvir essa pergunta. Mas o futuro onde estou, interessado, cordial, memorialista, ignora isto: sessenta anos depois, sou eu a geração falecida. Não consigo ouvir as perguntas e mesmo as que formulo são ecos confusos entre noticiários.
Comovo-me com as imagens, não me conformo com as distâncias, apanho aviões. Sou rápida como o século, mas é na lentidão que me perco, à procura. À procura.

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A NOITE

Os sorrisos. Uma alegria estranha, tão estranha. Copos. E escuridão. Material vítreo, onde quase tudo é reflexo. Raramente tive passaporte para estas mesas onde a juventude é eterna, da cintura para baixo. Aqui ninguém se confessa, é pecado. Leva-se uma enorme bagagem, o peso do transitório. Somos forasteiros e fugitivos. Gente sem terra. Sem pátria própria. Sem bandeira e tantas vezes sem língua. Gesticulamos muito, há em nós uma vontade irreprimível de nos fazermos entender, de nos entendermos. Traficamos tudo: passados (somos tragédias), presentes (malabaristas da suspensão), futuros (possibilidades absurdamente infinitas).  
Plural não é colectivo. Há qualquer coisa de tão democrático em nós! Herdeiros de uma plenitude inútil, onde podemos mas nem sempre queremos. Podemos foder, podemos dizer foder. Podemos amar, podemos dizer amor. Não temos memória de nada exíguo que nos tolha o corpo, celas pequenas ou dor arbitrária, nomes falsos ou moradas incertas. A guerra fria e todas as revoluções ingénuas criaram-nos com tanto carinho. Uma overdose de carinho. Bombas de espaço, fronteiras abaixo, massacres acima.
 A amplidão é tal que não há tempo para queixumes. Tudo pode e deve ser velocidade. A nossa vertigem multiplicada pelo chão que pisamos, conta incerta que nos deve expandir. Há que ser invertebrado, partir membros, forçar articulações. Mesmo assim, não chegará para fazer o nosso lugar. Uns tentam mais, sorriem ao seu corpo estendido em sucesso. Aberrações de feira, felizes e com o seu particularíssimo público. Outros não tentam nada, desistem, entristecem. Vencidos de si, nem sequer podem culpar ninguém.
A terminologia bélica adequa-se. Mesmo sem dicionários, somos tantas vezes a entrada da guerra. Saímos à noite, como os animais mais ferozes, e sorrimo-nos desgraçadamente, numa confrangedora incapacidade de sermos o que parecemos. Maltratamo-nos. Reinventamos a tortura. Carrascos sem convicção. Vítimas agressoras. Celebramos o nosso paradoxo. Erguemos copos como se não tivéssemos mãos. Queremos abrigos mas não nos deixamos acolher. Voltamos sozinhos para casas que não sabemos de quem são. Proprietários de tudo, emprestamo-nos à noite como se fossemos baratos. Mas tudo sai caro. Demasiado caro. Ou eu nasci de manhã e nunca aprendi a negociar com a escuridão.

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O AMOR

Perdi o primeiro momento em que te vi, como um objecto que largamos porque não vamos precisar. Estaríamos entre livros. Pó. Sabedoria encadernada. Proximidade inocente. A opção de abrir ou fechar.
Sonhei que me escrevias uma carta:

Queria dizer-te que tudo vai mudar. Os olhos que julgas que tens serão outros e nada do que te digam sobre eles fará nenhum sentido, porque serão novos, recém-nascidos. O teu corpo será qualquer coisa que continua no mundo mas de outra forma, como se o chão tivesse perdido a utilidade. O tempo também ganhará contornos diferentes e, mais do que nunca, não o vais conseguir apanhar. A diferença é que estarás feliz com isso. Nós vamos entrar pelos dias um do outro  e instalarmo-nos neles como nunca tivesse existido outro lugar. Por isso, prepara tudo para a nossa chegada: vai às consultas médicas, ao cabeleireiro, visita todos os que precisam de ti, alimenta o gato e conta-lhe os segredos urgentes, marca férias no mar com cama de casal, avisa o mundo que agora serás a mesma, mas melhor. Encontramo-nos lá, então.

Chegámos ao mesmo lugar, como combinado.
Lá, perguntaste-me o que fazia quando acordava de noite, antes de ti.
Deixei de adormecer para te responder, diariamente.
Festejei as tuas mãos longas por poder amar-te perto de todos.
O corpo : uma aflição e depois uma escada.
Disseste-me que deus estava entre nós, entre nós os dois, numa varanda.
Éramos fogo pela água. Tudo transbordava. Os poros, os olhos, os dias. Parecia um milagre.
Deus deve ser afinal, como sempre suspeitei, apenas uma ficção.
Fomos breves. Somos silêncio. Serei ferida.
E guardei a tua carta, dentro dos ossos.

In Criatura 6, 2011 

1 comentário:

  1. A coisa mais bonita e crua que li no fim de 2011. Vou entrar com Amor no novo ano.

    Inês L. (Josephine)

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