ORAÇÃO DOS BOCEJADORES

                                        Dedicado a Leo Le Gris-Bocejador

Senhor.
Estamos cansados dos teus dias
e das tuas noites.
A tua luz é demasiado barata
e cai com lamentável frequência.
Os mundos nocturnos
produzem uma péssima iluminação
e nas nossas aldeias
vimo-nos na necessidade de semear à noite
um cosmos de lâmpadas eléctricas.
Senhor
Aborrecem-nos as tuas auroras
e estamos cansados
dos teus escandalosos crepúsculos.
Porquê o mesmo espectáculo todos os dias
desde que deste corda ao mundo?
Senhor
Deixa que agora o mundo gire ao contrário
para que as tardes sejam pela manhã
e as manhãs sejam pela tarde.
Ou pelo menos
-Senhor-
se não nos podeis satisfazer então
-Senhor-
suplicamos-te nós todos os bocejadores
que transfiras os teus crepúsculos
para o meio-dia.
Ámen.

Luis Vidales,  in Um País que Sonha. Cem anos de poesia colombiana (1865-1965), Assírio & Alvim, 2012 (selecção de Lauren Mendinueta e tradução de Nuno Júdice)
OS AMANTES

Os que se amaram devem ficar cegos.
Para que os seus gestos sejam sem sentido.
Para que os seus barcos girem sem graça nem proveito.
Como as tempestades...
cegos.

Cegos como as bandeiras depois da vitória
ou como as espadas que estão sempre nuas e gloriosas.

Que rancor pelos cegos
e pelas tempestades.
E pelos que acreditam que o amor é fartura.
Ouvi-o bem: O amor é a fome.

Carmelina Soto, in Um País que Sonha. Cem anos de poesia colombiana (1865-965), Assírio & Alvim, 2012 (selecção de Lauren Mendinueta e tradução de Nuno Júdice)
QUASE OBSCENO

Se quiseres ouvir o que me digo na almofada
o rubor do teu rosto será a minha recompensa
São palavras tão íntimas como a minha própria carne
que padece a dor da tua implacável lembrança

Conto-te Sim? Não te vingarás um dia? Digo-me:
Beijaria essa boca lentamente até a tornar vermelha
E no teu sexo o milagre de uma mão que desce
no momento mais inesperado e como por acaso
o toca com esse fervor que inspira o sagrado

Não sou malvado Trato de te enamorar
Tento ser sincero com o doente que estou
e entrar no malefício do teu corpo
como um rio que receia o mar mas acaba por morrer nele.

Raúl Gómez  Jattin, in Um País que Sonha. Cem anos de poesia colombiana (1865-1965)Assírio & Alvim, 2012 (selecção de Lauren Mendinueta e tradução de Nuno Júdice)

Viviane Maier
 Domingo

Nada rasga o céu. Nós é que somos feitos de papel. Pelas esquinas encontro restos de prostitutas. Uma delas pede-me trinta cêntimos. Espanto-me com esta contabilidade organizada que estipula tão rigorosamente a medida das coisas não vividas. Cêntimos. Trinta. Oiço o metal dos corpos, é outra gente que acorda arrastando ferros bicudos por dentro. São poucos e não se chegam. Saem sozinhos. Olham para cima. Naquele momento consolam-se na vitória sobre os recolhidos, massa silenciada que reza hábitos pequenos atrás das cortinas. A natureza, quase cínica, um pouco má, como uma mulher espantosa que invade um hospício. Volúpia que amanhece, exército de escuridão rendido, água, vento e terra. Nós, sonhos e pressas a bater baixinho, apenas uma insuficiência cardíaca, hoje excepcionalmente em posição de descanso. 
(...) Deveria esperar-se e reunir sentido e doçura ao longo de toda a vida, se possível uma longa vida, e depois, mesmo no fim, talvez se pudesse então escrever dez versos bons. Pois os versos não são, como as pessoas julgam, sentimentos (esses aparecem bastante cedo) - são experiências. Para conseguir um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como voom os pássaros e conhecer os gestos de pequenas flores quando se abrem de manhã. É preciso poder recapitular caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que há muito se via aproximarem-se - dias da infância ainda por esclarecer, pais que era preciso magoar quando nos traziam uma alegria que nós não compreendíamos (era uma alegria para outro), doenças infantis que tão estranhamente começam acompanhadas de tantas transformações profundas e difíceis, dias passados em quartos calmos junto ao mar, o próprio mar, os mares, as noites passadas em viagem que nas alturas se dissipavam sussurrando e voavam com todos os astros - e ainda não basta poder recapitular tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor em que nenhuma a outra se assemelhava, de gritos de mulheres em trabalho de parto e de parturientes leves, brancas, adormecidas, que se fecham.  Mas também é preciso ter estado junto de moribundos, ter ficado sentado junto de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos intermitentes. E também não basta ter recordações. É preciso poder esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois as próprias recordações ainda não são o que mais importa. Só quando se tornam sangue dentro de nós, olhar e gesto, quando deixam de ter nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então pode acontecer que, no decurso de uma hora muito rara, a primeira palavra de um verso delas se erga e delas saia.

Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, Relógio d'Água, 2003, or. 1910 (tradução de Maria Teresa Dias Furtado)
SINOPSE

Nem martelo nem bigorna, como sempre
desejei: as tardes à janela, sem vizinhos nem
ardis, a injustiça reduzida ao mecanismo
natural da bicharada, o lavradio do amor
a tempo inteiro.
                        Só me falta, para tudo
proteger em cobardia, uma campânula
de cego na cabeça, aprender a fechar os olhos
e ouvidos ao avanço hertziano da desdita.
Então serei feliz e integral como um cadáver.


José Miguel Silva, in Serém, 24 de Março, Averno, 2011
BRAVATA BICOLOR

Eu tenho para mim que os dias
do homem estão contados
por um analfabeto. Mas ao pé
de ti nada me tira a certeza
de que o engano será sempre
a nosso favor. Talvez por isso,

saio para a rua desarmado,
enfio confiante a mão na caixa
do correio, desacato camiões
de fumo crítico e prossigo,
chego a horas onde quero.

Os maus pressentimentos,
não faço, simplesmente,
caso eles. Sei que tenho
em ti um amuleto poderoso.
E se a morte, quando passo,
me diz "Viva!", nem respondo. 

José Miguel Silva, in Serém, 24 de Março , Averno, 2011


Hoje eu vou fazer
ao meu jeito vou fazer
um samba sobre o infinito.

Marisa Monte
Você habita o próprio centro
de um coração que já foi meu.

António Cícero, in Guardar, Edições Quasi, 2002
Nunca tinha tomado consciência, por exemplo, da enorme quantidade de rostos que há. Existem numerosas pessoas, mas os rostos são ainda mais, pois cada uma tem vários. Há pessoas que usam um rosto durante anos a fio e é claro que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas que foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples: não o mudam, nem sequer o mandam limpar. Ainda está bom, afirmam, e quem lhes pode provar o contrário? Mas então pode naturalmente perguntar-se: uma vez que têm vários rostos, o que fazem com os outros? Guardam-nos. São para os filhos. Mas também acontece que os cães saem com eles. E porque não? Um rosto é um rosto.
Outras pessoas colocam os seus rostos com uma rapidez incrível, um após outro, e gastam-nos. Primeiro, parece-lhes que chegariam para sempre, mas, mal fazem quarenta anos, o que têm já é o último. Tudo isto tem, evidententemente, o seu lado trágico. Não estão habituadas a poupar rostos, o último fica gasto ao fim de oito dias, tem buracos, em muitos pontos é fino como o papel, e então vai aparecendo gradualmente o que está por baixo, o não-rosto, e é com ele que andam.

Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, Relógio d'Água, 2003, or 1910 (tradução de Maria Teresa Dias Furtado)


















Perguntou por ti. Disse-lhe 'em mim'. Continuou à procura. 
Estava deitado e tinha os olhos fechados. E havia alturas, dias  menos movimentados, por assim dizer, em que essa posição era perfeitamente suportável. E foi então que se lembrou de usar os poemas. Ninguém seria capaz de acreditar como isso ajudava. Quando se ia dizendo assim lentamente um poema, com a entoação cadenciada das rimas finais, então havia de certo modo algo estável para o qual se podia olhar, interiormente, entenda-se. Mas ele sempre se interessara de modo especial pela literatura. Não se lamentava do seu estado, garantia-me o estudante que o conhecia havia muito. Só que com o tempo se desenvolvera dentro dele uma admiração excessiva por aqueles que, como o estudante, andavam lá fora e suportavam o movimento da Terra.


Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, Relógio d' Água, 2003, or. 1910 (tradução de Maria Teresa Dias Furtado)
CANTO VIGÉSIMO PRIMEIRO

As folhas do damasqueiro tinham começado a cair
em Julho e depois de Agosto a Setembro.
Nós divertiamo-nos a recolhê-las uma de cada vez
e a contá-las em voz alta.
Um dizia: mil, mil e uma, mil e duas, mil e três,
o outro continuava: mil e quatro, mil e cinco, mil e seis.
A cantilena durava até à noite
e assim enchíamos três sacos.

Mas uma manhã meu irmão deixou de trabalhar,
por razões que não quis adiantar,
soube depois que se irritou
porque brincando lhe chamei cretino
por uma folha não contada.
Eu dissera: dois mil e dois e ele dois mil e quatro;
e a dois mil e três para onde foi?
Ficámos dez dias sem falar. Levantávamo-nos
de costas voltadas um para o outro e comíamos cabisbaixos;
entretanto as primeira neblinas
iam tecendo um véu de água fina sobre o dorso do capote.
À noite lançávamos aquelas folhas, um punhado cada um,
sobre o fogo e ficávamos a contemplar as labaredas.

Tonino Guerra, in O MEL, Assírio & Alvim, 2003 (tradução de Mário Rui de Oliveira)

16 Março 1920-21 Março 2012
NASCE O POETA

em solo humano
o nome é lançado
(ou cai
do acaso)

            uma aurora
oculta num barulho

             uma pedra
             turva

a palavra
dita entre ráfagas
de chuva
e lampejos na noite:

                        lobo
                um sopro
            um susto
                um nome
                sem coisa

        o uivo
        na treva

       o golpe
       na vidraça

é o vento?

        é o lobo

a palavra sem rosto
que se busca no espelho

Ferreira Gullar, in Muitas Vozes, José Olympio Editora, 1999
O pão

Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar.
 Rui Costa, in A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Edições Quasi, 2005

Actuação escrita

Pode-se escrever
Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem ouvir caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada
Pode-se não escrever

Pedro Oom, in Actuação Escrita, & Etc., 1980 
Ela

O meu amado é alvo e rosado,
distingue-se entre dez mil;
a sua cabeça é de ouro maciço;
são cachos de palmeira os seus cabelos,
negros como o corvo;
os seus olhos são como pombas,
nos baixios das águas,
banhadas em leite,
pousadas no ribeiro.
As suas faces são canteiros de
bálsamo
onde crescem plantas perfumadas;
os seus lábios são lírios
gotejam mirra que se expande;
os seus braços são ceptros de ouro,
engastados com pedras de Társis;
o seu ventre é marfim polido,
cravejado de safiras;
as suas pernas são pilares de alabas-
tro,
assentes em base de ouro fino;
o seu aspecto é como o do Líbano,
um jovem esbelto como os cedros;
a sua boca é só doçura
e todo ele é delicioso.
Este é o meu amado, este, o meu
amigo,
mulheres de Jerusalém.

Cântico dos Cânticos, Bíblia Sagrada, Franciscanos Capuchinhos (coordenação geral Herculano Alves)
Aqui, neste lugar de árida claridade,
a duas mil milhas de onde as minhas lembranças
vão ganhando uma poeira doce, produto acumulado
de prosaica ambição a atrair ignorância,
vejo claramente até à derradeira página
o silêncio que ousei quebrar pelo meu curto tempo.
Nenhuma peça foi fácil, mas cada uma encaixou,
amortalhada em letra, no buraco em forma de livro.

Ficai comigo, palavras, mais um pouco, destes-me
o meu direito de renúncia junto ao sol, aplacastes
as feridas da minha juventude, troçastes
dos meus cuidados de adulto, tornastes em meu favor  
o que nas mais das vidas seria pura falha,
e formastes mais sólidos fantasmas desses que amei.

John Updike, in Ponto Último e outros poemas, Civilização Editora, 2009 (tradução de Ana Luísa Amaral)

PERGUNTAS
 
Numa incerta hora fria
perguntei ao fantasma
que força nos prendia,
ele a mim, que presumo
estar livre de tudo,
eu a ele, gasoso,
todavia palpável
na sombra que projeta
sobre meu ser inteiro:
um ao outro, cativos
desse mesmo princípio
ou desse mesmo enigma
que distrai ou concentra
e renova e matiza,
prolongando-a no espaço
uma angústia do tempo.

Perguntei-lhe em seguida
o segredo de nosso
convívio sem contato,
de estarmos ali quedos,
eu em face do espelho,
e o espelho devolvendo
uma diversa imagem,
mas sempre evocativa
do primeiro retrato
que compõe de si mesma
a alma predestinada
a um tipo de aventura
terrestre, cotidiana.

Perguntei-lhe depois
por que tanto insistia
nos mares mais exíguos
em distribuir navios
desse calado irreal,
sem rota ou pensamento
de atingir qualquer porto,
propícios a naufrágio
mais que à navegação;
nos frios alcantis
de meu serro natal,
desde muito derruído,
em acordar memórias
de vaqueiros e vozes,
magras reses, caminhos
onde a bosta de vaca
é o único ornamento,
e o coqueiro-de-espinho
desolado se alteia.

Perguntei-lhe por fim
a razão sem razão
de me inclinar aflito
sobre restos de restos,
de onde nenhum alento
vem refrescar a febre
desse repensamento:
sobre esse chão de ruínas
imóveis, militares
na sua rigidez
que o orvalho matutino
já não banha ou conforta.

No vôo que desfere,
silente e melancólico,
rumo da eternidade
ele apenas responde
(se acaso é responder
a mistérios, somar-lhes
um mistério mais alto):

Amar depois de perder.

Carlos Drummond de Andrade, in Antologia Poética, Editora Record, 2009 


I've heard there was a secret chord
That David played, and it pleased the Lord
But you don't really care for music, do you?
It goes like this
The fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing Hallelujah


Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah


Your faith was strong but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty in the moonlight overthrew you
She tied you to a kitchen chair
She broke your throne, and she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah


Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah


Baby I have been here before
I know this room, I've walked this floor
I used to live alone before I knew you.
I've seen your flag on the marble arch
Love is not a victory march
It's a cold and it's a broken Hallelujah


Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah


There was a time when you let me know
What's really going on below
But now you never show it to me, do you?
And remember when I moved in you
The holy dove was moving too
And every breath we drew was Hallelujah


Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah


Maybe there’s a God above
But all I’ve ever learned from love
Was how to shoot at someone who outdrew you
It’s not a cry you can hear at night
It’s not somebody who has seen the light
It’s a cold and it’s a broken Hallelujah


Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah


You say I took the name in vain
I don't even know the name
But if I did, well, really, what's it to you?
There's a blaze of light in every word
It doesn't matter which you heard
The holy or the broken Hallelujah


Hallelujah, Hallelujah


I did my best, it wasn't much
I couldn't feel, so I tried to touch
I've told the truth, I didn't come to fool you
And even though it all went wrong
I'll stand before the Lord of Song
With nothing on my tongue but Hallelujah
Noite na terra. Nunca é noite na terra porque a noite roda. Mas é noite na terra quando duas pessoas estão coladas uma à outra. Só nós estamos vivos, somos a Arca de Noé.

Alexandra Lucas Coelho, E a Noite Roda, Edições tinta-da-china, 2012
"Eu fui um homem qualquer. Mais nada", disse Drumond de  Andrade a Zuenir Ventura, em entrevista publicada dia 19 de Novembro de 1980, na revista Veja.

Uma conversa rara entre o poeta e o jornalista. Rara, pelos homens que junta. Rara, por envolver um jornalista. Drummond de Andrade era considerado, como é referido neste encontro, demasiado reservado para os desejos da sempre curiosa imprensa. Muitas vezes perguntam a Zuenir Ventura como conseguiu: plantou-se à porta da casa de Drummond? Aguentou fome, chuva e vento? Foi o mais chato dos chatos? Conhecia alguém da família? Muito mais simples:
Zuenir Ventura estava nos seus afazeres diários quando recebeu um telefonema da editora de Drummond de Andrade, a pedir uma entrevista ao poeta. Situação bizarra. Pensou que era "trote" dos colegas, essa era uma brincadeira comum entre jornalistas. Respondeu com sentido de humor e desligou. Não voltou a pensar no assunto. Mais tarde, a editora insistiu: Drummond quer mesmo dar esta entrevista. Zuenir saiu disparado da redacção, com medo de perder uma oportunidade tão preciosa. O jornalista jura a pés juntos que, até hoje, não conhece a razão da escolha, embora não faltem motivos.

*Um agradecimento muito especial ao Zuenir Ventura, por me ter contado esta história e por facilitar o acesso a este pedaço de História.
"Uma mulher que é mulher tem sempre mais trabalho que o homem. Mulher que se preza de ser mulher sabe que tem de ser assim"
ALEGRIA

O esplendor do sol
deslumbrava-te ontem
doendo
como uma ferida
nas pupilas de um cego.
Mas hoje
o esplendor do sol
não era suficientemente brilhante
para o teu brilho:
no mundo infinito só existe
este teu esplendor
verdadeiro

Antonia Pozzi, in Morte de uma Estação, Averno, 2012 (selecção e tradução de Inês Dias)
INÍCIO DA MORTE

Quando te dei
as minhas imagens de criança
agradeceste-me: dizias que era
como se eu quisesse
recomeçar a vida
para ta poder dar inteira.

Agora já ninguém
resgata da sombra
a pequena leve
pessoa que existiu
numa breve
aurora - a Boneca Menina:

agora ninguém se debruça
à beira do meu berço esquecido -

Alma -
e tu entraste
no caminho de morrer.

Antonia Pozzi, in Morte de uma Estação, Averno, 2012 (selecção e tradução de Inês Dias)