(...) Deveria esperar-se e reunir sentido e doçura ao longo de toda a vida, se possível uma longa vida, e depois, mesmo no fim, talvez se pudesse então escrever dez versos bons. Pois os versos não são, como as pessoas julgam, sentimentos (esses aparecem bastante cedo) - são experiências. Para conseguir um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como voom os pássaros e conhecer os gestos de pequenas flores quando se abrem de manhã. É preciso poder recapitular caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas que há muito se via aproximarem-se - dias da infância ainda por esclarecer, pais que era preciso magoar quando nos traziam uma alegria que nós não compreendíamos (era uma alegria para outro), doenças infantis que tão estranhamente começam acompanhadas de tantas transformações profundas e difíceis, dias passados em quartos calmos junto ao mar, o próprio mar, os mares, as noites passadas em viagem que nas alturas se dissipavam sussurrando e voavam com todos os astros - e ainda não basta poder recapitular tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor em que nenhuma a outra se assemelhava, de gritos de mulheres em trabalho de parto e de parturientes leves, brancas, adormecidas, que se fecham. Mas também é preciso ter estado junto de moribundos, ter ficado sentado junto de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos intermitentes. E também não basta ter recordações. É preciso poder esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois as próprias recordações ainda não são o que mais importa. Só quando se tornam sangue dentro de nós, olhar e gesto, quando deixam de ter nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então pode acontecer que, no decurso de uma hora muito rara, a primeira palavra de um verso delas se erga e delas saia.
Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, Relógio d'Água, 2003, or. 1910 (tradução de Maria Teresa Dias Furtado)
"(...)as próprias recordações ainda não são o que mais importa. Só quando se tornam sangue dentro de nós, olhar e gesto, quando deixam de ter nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então pode acontecer que, no decurso de uma hora muito rara, a primeira palavra de um verso delas se erga e delas saia."
ResponderEliminarque boa escolha, Clara. gosto muito de Rilke.
Josephine