Nunca tinha tomado consciência, por exemplo, da enorme quantidade de rostos que há. Existem numerosas pessoas, mas os rostos são ainda mais, pois cada uma tem vários. Há pessoas que usam um rosto durante anos a fio e é claro que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas que foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples: não o mudam, nem sequer o mandam limpar. Ainda está bom, afirmam, e quem lhes pode provar o contrário? Mas então pode naturalmente perguntar-se: uma vez que têm vários rostos, o que fazem com os outros? Guardam-nos. São para os filhos. Mas também acontece que os cães saem com eles. E porque não? Um rosto é um rosto.
Outras pessoas colocam os seus rostos com uma rapidez incrível, um após outro, e gastam-nos. Primeiro, parece-lhes que chegariam para sempre, mas, mal fazem quarenta anos, o que têm já é o último. Tudo isto tem, evidententemente, o seu lado trágico. Não estão habituadas a poupar rostos, o último fica gasto ao fim de oito dias, tem buracos, em muitos pontos é fino como o papel, e então vai aparecendo gradualmente o que está por baixo, o não-rosto, e é com ele que andam.
Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, Relógio d'Água, 2003, or 1910 (tradução de Maria Teresa Dias Furtado)
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