Origem dos sonhos esquecidos

Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca

Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar

Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância dum lago desesperado

Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante

Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras

qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu

Qualquer distância
entre tu e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo

Mário-Henrique Leiria, in A Única Real Tradição Viva-Antologia da Poesia Surrealista (org. Perfecto E. Cuadrado) Assírio & Alvim, 1999 












Trás-os-Montes, 2010
A cidade parecia tomada de um sono extravagante e até as árvores, com as suas folhas limpas e os seus atónitos pássaros, pareciam empenhadas em oferecer uma certa sensação de honestidade.

Manuel MoyaCinzas de Abril, Sextante, 2012 (tradução de Henrique Tavares e Castro)
Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro
da cor do jardim

António Maria Lisboa, in Poesia, Assírio & Alvim, 1995

NÃO SEM SABER

"Um beijo traz dor"-
Concordando, cito
Estas palavras que o sábio Rodrigo escreveu-
E no entanto, beijarei de novo.

Tennessee Williams, in Alguns Poemas, Língua Morta, 2011



     André Kertezs, 1970's

     Encontrado aqui

Regresso a Ítaca


Nem sequer tinha um abre-latas de vinte e cinco cêntimos

Raymond Chandler


Não é como anunciam nos folhetos,
As traves dificilmente se apoiam no muro,
As janelas estão de rastos.
No mar, com uns copos, não é tão tola.
Caminhas como um vazio pelas ruas
E o sol que te segue desde o céu
Já não é mais que a pupila de uma pomba
Brilhando no telhado.

Mas dobras as últimas esquinas.
Parece esta a tua casa,
O lugar onde ancoras e governas
A hemorragia que é viver
Com um morto colado ao passaporte.
Passas a porta e já as traves
Te assinalam um ponto além do céu.
O sol morreu. Na cama
Aguarda-te o corpo falso de outro corpo
Que outrora desejaste.

Manuel Moya, in Quarto com Ilhas, Livrododia, 2008 (tradução de Rui Costa).
(...)
Deambulo nem triste nem alegre deambulo
deixo passos deambulantes em cidades cintilantes
gosto de coisas como gente que morreu
e recolho nos olhos restos de silêncio
além das árvores sombrias do olhar
dos goivos carmesins e das hortênsias e jasmins
Ponho a mão na tristeza como numa mesa
junto à velha vidraça visível da praça
vidraça corrompida por lilases
(...)

Ruy Belo, in A Margem  da Alegria, Presença, 1998



Gracias a tu cuerpo doy
Por haberme esperado
Tuve que perderme pa'
llegar hasta tu lado

Gracias a tus brazos doy
Por haberme alcanzado
Tuve que alejarme pa'
llegar hasta tu lado

Gracias a tus manos doy
Por haberme aguantado
Tuve que quemarme
Pa'llegar hasta tu lado


Lhasa de Sela
Tu és a música, não a canção.

Amy Lowell, "Escutando" in Não Eram Rosas, Língua Morta, 2011
(...)
O havermo-nos encontrado aqui na horrível sala dos passos perdidos
é que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa dos meus
           dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo o fio da
          meada sem que é engraçado hajam batido à porta entrado
          ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar
(..)

Mário Cesariny, "Corpo Visível", in Pena Capital, Assírio e Alvim, 1999
O TAXI

Quando me afasto de ti
o mundo bate sem força
como um tambor que enfraquece.
Eu chamo-te entre as estrelas lá no alto
e grito pelas cristas do vento.
As ruas, rapidamente,
uma a seguir à outra,
levam-me para longe de ti,
e os candeeiros da cidade furam-me os olhos
para que não mais contemple a tua face.
Porque deverei eu abandonar-te,
para acabar magoada nas afiadas esquinas da noite?

Amy Lowell, in Não Eram Rosas, Língua Morta, 2012 (tradução de Ricardo Marques)
O MAIS BELO ESPECTÁCULO DE HORROR SOMOS NÓS.
Este rosto com que amamos, com que morremos, não é nosso; nem estas cicatrizes frescas todas as manhãs nem estas palavras que envelhecem no curto espaço de um dia. A noite recebe as nossas mãos como se fossem intrusas, como se o seu reino não fosse pertença delas, invenção delas. Só a custo, perigosamente, os nossos sonhos largam a pele e aparecem à luz diurna e implacável. A nossa miséria vive entre as quatro paredes cada vez mais apertadas, do nosso desespero. E essa miséria, ela sim verdadeiramente nossa, não encontra maneira de estoirar as paredes. Emparedados, sem possibilidade de comunicação, limitados no nosso ódio e no nosso amor, assim vivemos. Procuramos a saída - a real a única - e damos com a cabeça nas paredes. Há então os que ganham a ira, os que perdem o amor.
Já não há tempo para confusões - a Revolução é um momento, o revolucionário todos os momentos. Não se pode confundir o amor a uma causa, a uma pátria, com o Amor. Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor ao homem e à liberdade. NÃO SE PODE CONFUNDIR! Quem ama a terra natal fica na terra natal; quem gosta do folclore não vem para a cidade. Ser pobre não é condição para se ganhar o céu ou o inferno. Não estar morto não quer forçosamente dizer que se esteja vivo, como não escrever não equivale sempre a ser analfabeto. Há mortos nas sepulturas muito mais presentes na vida do que se julga e gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores.
A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica.
Os profetas, os reformistas, os reaccionários, os progressistas arregalarão os olhos e em seguida hão-de fechá-los de vergonha. Fechá-los como têm feito sempre, afinal, e em seguida mergulharem nas suas profecias. Olharem para a parte inferior da própria cintura e em seguida fecharem os olhos de vergonha. Abandonarem-se desenfreadamente à carpintaria das suas tábuas de valores, brandirem-nas por cima das nossas cabeças como padrões para a vida, para a arte, para o amor e em seguida fecharem os olhos de vergonha às manifestações mais cruéis da vida, da arte e do amor.
MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SOZINHO no meu desespero e na minha revolta. Sei pela luz que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto de matar, pela que se extingue em cada homem à vista dos -massacres, sei pelas palavras que uivam, pelas que sangram, pelas que arrancam os lábios, sei pelos jogos selvagens da infância, por um estandarte negro sobre o coração, pela luz crepuscular como uma navalha nos olhos, pelas cidades que chegam durante as tempestades, pelos que se aproximam de peito descoberto ao cair da noite - um a um mordem os pulsos e cantam - sei pelos animais feridos, pelos que cantam nas torturas.
Por isso, para que não me confundam nem agora nem nunca, declaro a minha revolta, o meu desespero, a minha liberdade, declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em punho -e que ninguém se aproxime para aquém dos mil passos

EXCEPTO TU MEU AMOR EXCEPTO TU
MEU AMOR

minha aranha mágica agarrada ao meu peito
cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano      dois anos       um século
agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo

MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar

DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE
O TEU ÚLTIMO CABELO

António José Forte,  in Uma Faca nos Dentes, Parceria A.M. Pereira, 2003
É preciso fazer um esforçoConsiderar possívelEstar sempre de perfilSer mono-asaBarbatana sem dorsoBranco sem luzAve sem cisneOndular no arSer o remoto futuroRelâmpago sem ser vistoForça sem motorBuraco sem quedaConsiderar possívelEros sem frenéticoLivro sem que o leiamPoema sem que o façamFazer um esforçoSentir insensívelSem que seja possívelSem que seja precisoProfundamenteTudo é tão importanteComo um olhar furtivo

Ana Hatherly, encontrado aqui
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com as suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.

Carlos Drummond de Andrade, "Nosso Tempo", in A Rosa do Povo, Editora Record, 2003
Quando os motores dos aviões param por avaria, isso não é o fim do mundo. Os aviões não caem do céu como pedras. Os enormes aviões de passageiros, com vários motores, continuam a deslizar durante meia hora ou três quartos de hora para depois se esmagarem ao tentarem aterrar. Os passageiros não notam nada. Voar com os motores parados não parece diferente de voar com eles a funcionar. É mais silencioso, mas só um pouco mais silencioso: mais barulhento que os motores  é o vento que se quebra na fuselagem e nas asas. Num momento qualquer, ao olhar pela janela, a terra ou o mar estão ameaçadoramente próximos, a não ser que as hospedeiras e os hospedeiros tenham fechado as cortinas para pôr um filme a correr. Talvez os passageiros sintam que esse voo, um pouco mais silencioso, é especialmente agradável.
Aquele Verão foi o voo planado do nosso amor. Ou melhor, do meu amor por Hanna; não sei nada sobre o amor dela por mim.

Bernhard Schlink, O Leitor, Asa, 1998 (tradução de Fátima Freire Trindade)

Não contes os anos. Conta antes as conchas partidas que levaste da praia. Todos os teus gestos sem sentido. Conta os beijos que te deram e exclui os que não foram música. Conta as canções que não ouviste, porque tas cantaram quando dormias. Os dias que viveste como se estivesses embalado num berço. Conta os pés frios que te acordaram na cama antes de o pesadelo começar. Os bichos que não te pediram nada. As festas inesperadas, sem adereços. Conta os amigos e lembra-te dos nomes. Conta os nomes que começam com letras quentes. Conta os lugares que não precisaste de fotografar. As vezes que te esqueceste das chaves de casa. Conta as portas em que não pudeste entrar mas esperaste. Conta as pestanas das mulheres que amaste e divide por dois.  Todas as ocasiões em que dividiste sem hesitar. Conta os espelhos que te fizeram mal e os olhos que foram rigorosos contigo. Conta os segredos que contaste. As coisas inúteis que salvarias de incêndios. Conta o fogo que foste, às vezes, labareda a labareda. Conta a água que te ofereceram. Conta os dias de sede feliz. Conta as luzes apagadas, mas sobretudo, conta as que se acenderam. Conta a mãe, o pai e multiplica-os. Conta as horas de silêncio e as palavras em que pensaste. Conta as sombras que romperam o escuro. As rixas em que matarias pelos teus irmãos.  Conta os teus irmãos. Não contes os anos. Parabéns, outra vez.
Grande número

Quatro biliões de pessoas nesta Terra
e a minha imaginação é como era.
Não lida bem com grandes números.
Continua a comover-se com o singular.
Voando na escuridão como a luz da lanterna,
ilumina apenas umas quantas caras,
votando as restantes às trevas,
à deslembrança, ao desconsolo.
Mas isto nem o próprio Dante captaria.
Muito menos quem o não é.
Nem mesmo com todas as musas.

Non omnis moriar- a aflição prematura.
Contudo, será que vivo por inteiro e será isto suficiente?
Nunca foi e muito menos agora.
Selecciono excluindo, só pode ser assim,
porém o excluído é cada vez mais numeroso,
mais compacto, mais agressivo.
À custa de inconcebíveis perdas - um poemeto, um suspiro.
Ao apelo gritante respondo com um sussurro.
O que calo, nunca vou exprimir.
O rato no sopé da montanha materna.
O tempo de vida - três marcas de unha na areia.

Nem os meus sonhos estão devidamente povoados.
Há neles mais solidão do que multidão e barulho.
Às vezes aparece alguém há muito falecido.
Uma única mão na maçaneta.
A casa vazia amplia-se em anexos de eco.
Corro da soleira da porta até ao vale
silencioso, como se não fosse ninguém, já anacrónico.

Como ainda há em mim este espaço,
não sei.

(1976)

Wislawa Szymborska, in Alguns Gostam de Poesia, Cavalo de Ferro, 2004  (tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)



Lisboa, 2012
14.
As primeiras casas perdem-se da
vista. Foi quando os homens viram
os olhos dos lobos muito perto e só
conseguiram matá-los à distância.
Então refugiaram-se de sua própria
condição de seres predestinados ao
amor. Inventaram mapas e destinos.

Rui Costa, in Breve Ensaio sobre a Potência, Língua Morta, 2012
Apresento-me. Com um nome e um corpo. E basta. Assim começaram as minhas histórias de amor e tudo o resto que quase não importa: empregos, declarações fiscais, aulas de dança, encontros de grupo e provas orais. Estou normalmente de pé. É um equilíbrio sombrio. Sombrio, quero dizer, obscuro. Nada do que define um nome e um corpo é visível: genética casual, memória teimosa, circuitos eléctricos que ligam cabeça e coração. É isto que se move, é isto que tem fome, é isto que tem sede. É isto que chora, é isto que ri. É isto que fica nas camas onde se é qualquer coisa a mais do que isto. Não propriamente o nome ou o corpo, nas suas superfícies lisas a que se chega com a mão. Mas mãos e olhos são o que temos para nos tocarmos. E meu deus, como te enganaste no tamanho dos olhos, pois é tanta a cidade por fora, tanta a gente por dentro. Não vos oiço, multidão íntima. A memória é-me apenas fotografia, revelação sarcástica do que já não existe. Vejo-vos sempre, com as pestanas do avesso. Passeio-nos pela rua, diariamente, com a ideia de que esse olhar impossível é tudo o que me resta de vós. Quanto à genética, combinação hiper tecnológica, bolas com números girando em espiral nas cópulas que geraram corpos e nomes, trago-a também comigo, secreta e avessa ao toque. Definiu o que entendeu, senhora autocrática e indiferente, e sentou-se nos meus gestos. Passeia-se pelos meus mortos quando ainda vivem e ri-se de mim. Sombra que me precede, espécie de continuidade em marcha atrás, impossível de agarrar. Acordo com ela para um mundo que se sabe imenso, que me espera trocista aos pés da cama, menino reguila que se mostra e desata a correr. Os olhos abrem-se para um dia onde repousa o telejornal da véspera, e seguem cegos e impotentes por microcosmos sem importância. Um contador de crueldades roda ao meu lado, em ritmo ascendente. É mecânico, faz barulho, mas dele não há memória, quero dizer, imagem. Descanso para os olhos, inquietude sonora que me torna impune mas não inconsciente. De repente choro, mas não posso eleger-te, nome, acima de todas as coisas. Porque este é o tempo da consciência e os desgostos de amor são quase banais. Há fotografias, há multidões, há uns olhos demasiado pequenos e um par de mãos inútil. Um corpo e um nome que apresento, simples evidências da nossa limitação. 
LITERATURA EXPLICATIVA

O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais, é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medicis
onze quilómetros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de elétrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero de junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva, homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr-do-sol apenas pôr-do sol.

Ruy Belo, in Todos os Poemas, "Palavra(s) de Lugar", Assírio & Alvim, 2000
Degradação

Quem se enaltecer será rebaixado
assim que se olhar ao espelho,
assim que a velhice o incapacitar,
assim que contiver a respiração
na esperança de que a dor não voltará.

É inesgotável a pluralidade dos deserdados
e dos demais mortais
que parecem aguentar a sua degradação com maior humildade:
o falcão já não assaz rápido para alcançar o pombo,
a cegonha coxa escorraçada pelo bando em retirada.
O ciclo das estações, a descida à terra.

E os poderes celestiais? O que fazem?
Passeiam-se, olham. -Nós aqui, e acolá o chamado Reino da Natureza.
O que é pior? A consciência ou a falta dela?
Pois bem, no Paraíso não havia espelhos.

(2003)

Czeslaw Milosz, in Alguns Gostam de Poesia, Cavalo de Ferro, 2004 (tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)
 
Evandro Teixeira


Eduardo Gageiro, 1982
O AFERIDOR

Tenho um Aferidor de Encantamentos.
A uma açucena encostada no rosto de uma criança
O meu Aferidor deu nota dez.
Ao nomezinho de Deus no bico do sabiá
O Aferidor deu nota dez.
A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura
O Aferidor deu nota vinte.
Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada
sentado nas pedras de suas próprias ruínas
O meu Aferidor deu DESENCANTO.
(O mundo é sortido, Senhor, como dizia o meu pai)

Manoel de Barros, in Ensaios Fotográficos, Edições Record, 2007
(...)
-Confesso que nunca me passou pela cabeça ouvir falar formigas, e muito menos através de microfones!
-Ora essa! Então não sabias que antigamente os animais falavam?
-Sim...antigamente... Mas agora...
-Na verdade- admitiu a formiga- a maioria dos animais tornou-se muda. Que queres? Os homens diziam tantos disparates que, certo dia, os bichos, para não se confundirem com vocês, votaram a greve geral, a greve do silêncio que ainda hoje dura...Greve apenas furada pelos papagaios e outras aves sem categoria...
-É o costume. Não há greve sem "amarelos"- interrompeu João Sem Medo para não ficar calado.
Mas a formiga emendou com prontidão:
-Nós não lhes chamamos "amarelos". Chamamos-lhes "verdes".
-Ah! -exclamou o rapaz, com admiração cortês.
Ao que se seguiu a pergunta lógica para continuar a conversa:
-Mas vocês não são "verdes", pois não?
-Nós?-tossiu a formiga rouca de catarro indignado. - Nós"verdes"? De maneira nenhuma. Pelo que ouço, ignoras totalmente as circunstâncias em que os bichos proclamaram a greve do silêncio... Na mesma ocasião resolveram instalar num sítio pouco acessível o Museu Vivo da Fábula, onde continuariam a falar como na Idade de Ouro...
-E eu encontro-me nesse tal museu misterioso?...
-Pois claro... Descobriste por acaso a entrada secreta para o país da fábula descrito pelos nossos grandes cronistas Esopo, Fedro e La Fontaine...
-É curioso!...-comentou João Sem Medo, mau grado seu, interessado. - E vocês mantêm a mesma moral das fábulas?
A formiga não se apressou a responder. Reflectiu alguns momentos antes de adiantar estas palavras cautelosas:
-Bem vês...Os nossos costumes foram evolucionando devagarinho...
-Já reparei. Vocês são civilizadíssimas. Até têm microfones.
-Se medes a civilização por maquinismos e aparelhómetros, ainda não viste nada... - gabou-se a formiga. - Nem supões como são agora os nossos formigueiros providos de electricidade, elevadores, radar, camionetas para transportar os alimentos para o Celeiro Central, máscaras contra o "DDT", computadores, etc.,etc.
E após o silêncio fatal que corta sempre todos os diálogos, prosseguiu digna e bem falante como se repetisse trechos de "sebenta" , embora pegados com cuspe:
-Mas... Bem... Aqui...como em todas... as sociedades...Percebes? Bem...Os animais dividem-se em dois grupos: os que teimam...Sim, os teimosos que respeitam as aparências mortas...E os criadores de ilusões de novas aparências...
Chegando aqui, respirou profundamente, tomou balanço, e terminou num fôlego:
-Nós, como já tiveste ensejo de verificar, pertencemos ao segundo grupo.
João Sem Medo lançou então esta sonda indiscreta:
-E as cigarras? Como despedem vocês agora as cigarras quando estas mandrionas vêm esmolar comida? Mandam-nas dançar como dantes?
A formiga tropeçou na resposta:
-Bem... Referes-te à clássica sentença de "Ah! cantaste? Pois dança agora", não?
E mais à vontade, apoiada no sinal de cabeça confirmativo de João Sem Medo:
-Não te ocultarei que nas últimas décadas vários movimentos revolucionários das Obreiras "dêmos de comer às cigarras" e "Abaixo La Fontaine!" perturbaram o sossego secular dos formigueiros... E impuseram até, aqui e além, novos fechos morais à famosa fábula, condizentes com a política não egoísta das camadas novas, amantes cem por cento da música concreta das cigarras. Por infelicidade, a experiência catastrófica de tentar sustentar os pobres musicantes-poetas, com a nossa alimentação de formigas práticas, desiludiu os idealistas mais inveterados. Não tardámos a averiguar que as cigarras não toleravam os mantimentos dos nossos armazéns (temos intrínseca necessidade de comidas diversas) e morriam na mesma... Umas a dançar, outras a cantar e todas em beleza, pois constava (elas próprias espalhavam essa lenda) que se alimentavam metafisicamente com cheiro das ervas e da luz do Sol... Da luz do Sol, imagina. Em resumo, pouco a pouco acabámos por...
Acanhou-se insegura. Mas com a ajuda do olhar interrogativo de João Sem Medo desembuchou:
-Acabámos por...comê-las.
-Por COMÊ-LAS?
-Sim, comê-las. Cheias de remorsos, mas que remédio? Seria um crime desaproveitar aquela carninha tão fresca e tão lírica, não achas? As asas então são uma delícia... Dão-nos uma tal sensação de liberdade...
(...)

José Gomes Ferreira, Aventuras de João Sem Medo-Panfleto Mágico em Forma de Romance, Leya, 2009
*inicialmente publicado em fascículos num jornal, em 1933, teve primeira edição, compilada, em 1963.
3.

Há um cio na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idoma ao ponto
de alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos,
passarinhos....
Nos restos de comida onde as moscas governam
ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras
a torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido e escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na
barriga do cavalo -
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga:
Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer
substantivo escuro nele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus
limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de
enxergar no olho de uma garça os perfumes do
sol.


Manoel de Barros, in Retrato do Artista Quando Coisa, Editora Record, 2009
V.

Às vezes, as mulheres casam-se com o ruído, têm filhos com o escuro. São pactos definitivos, contra os quais nada podemos. Moram, de aí em diante, para lá da redenção, mesmo que seja numa rua soalheira. Moram na terra dos homens, onde, está bom de ver, só um buraco lhes será destinado. O ralo de um lavatório onde afogar a alma. É muito comum. Acontece todos os dias. Acontecem quando vendem os sonhos como se fossem só horas de trabalho ou legumes malsãos. Quando crêem que a realidade existe mesmo e que não há veleiros para a lua. Quando não vigiam a ilusão. Quando deixam a estupidez vencer. A facilidade. O imediato. O palpável. O masculino. A goma-laca com que selar os poros ao desejo. Quando trocam um rosário de minetes pelo ronronar fabril de todas as famílias.
Tenham cuidado. Muito cuidado. Ou acordarão zombies, rodeadas de cadáveres. E com o Céu, e os seus animais místicos, turvados, fantasmagóricos, liquefeitos. Pelo meio, um rio em combustão.

Miguel Martins, in Um Homem Sozinho, Língua Morta, 2012
Uma vez mais: o que os une é uma espécie de lealdade. Uma lealdade luminosa e física, diferente daquela que a une ao pai, mas ainda assim acima de tudo lealdade; e uma vaga consciência da responsabilidade que nasce entre pessoas que, a uma dada altura, descobrem que o mundo é um sítio sério.

João Bouza da Costa, Travessa d'Abençoada, Sextante, 2012


Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains
Within the sound of silence

In restless dreams I walked alone
Narrow streets of cobblestone
'Neath the halo of a street lamp
I turned my collar to the cold and damp
When my eyes were stabbed by the flash of a neon light
That split the night
And touched the sound of silence

And in the naked light I saw
Ten thousand people, maybe more
People talking without speaking
People hearing without listening
People writing songs that voices never share
And no one dared
Disturb the sound of silence

"Fools", said I, "You do not know
Silence like a cancer grows
Hear my words that I might teach you
Take my arms that I might reach you"
But my words, like silent raindrops fell
And echoed
In the wells of silence

And the people bowed and prayed
To the neon god they made
And the sign flashed out its warning
In the words that it was forming
And the sign said, "The words of the prophets are written on the subway walls
And tenement halls"
And whispered in the sounds of silence

Paul Simon and Art Garfunkel


Duarte Belo, encontrado aqui
Os milagres são de uma natureza avessa à repetição. De beleza insuperável, são igualmente de uma inutilidade escandalosa.  Não mudam nada. Não previnem a solidão. Não alimentam o espírito. Não sabem explicar-se. E no entanto, permanecem chama na memória dos crentes. Raramente, a memória inscreve-se na pele e a esses chamam-lhes estigmatizados.
Impõe-se, depois dos milagres, uma certa discrição. Palavras comedidas e codificadas, entre espiões que sabem a verdade. Espiões místicos, com tanto de deslumbramento como de lógica - precisam sobreviver.
Entre eles, os gestos são contidos. Há uma cerimónia dos corpos que presta homenagem ao fogo que foram.  Excepto quando os escombros são horrendos e neles se encontram queimados gritando. Nesse caso, a homenagem é o silêncio. 






















Jeremy Lipking
Encontrado aqui
FELICIDADE

A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.

Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.

E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.

14/4/41

Jorge de Sena, in Antologia Poética, Asa, 2001


Mas se o tempo é infinito
quando o dia chega ao fim
fecho os olhos e repito
a noite gosta de mim